domingo, 24 de maio de 2020

Anotações para um 25 de maio: Inquietações, percepções, suposições e outras questões




1. Acolhamos uns aos outros

Estou há exatos 80 dias sem calçar o sapato de sapateado. Tempos difíceis esses, em que nos damos conta do pesar de tais contagens. Tenho contado também, entre perdas e ganhos, a quantidade de árvores que vejo através de minha janela, a quantidade de plantas espalhadas pela minúscula varanda do apartamento, a quantidade de cds ainda restante nas estantes de meu quarto, a quantidade de livros lidos, o dinheiro, o que a falta do dinheiro me impede de contar. Tenho contado vidas e mortes, desaparecimentos, violações, tenho contado idas e vindas, nesse mesmo tempo tenho contado esperanças. Assim têm sido os dias.
Durante esse período de isolamento, na solidão frutífera de meus espaços, todas as vezes que a boca seca, as mãos gelam e os pés se inquietam, eu tomo água; caminho um pouco em círculos; deito no chão; mãos ao rosto. Paragem. Súbito o som do ventilador de teto do meu quarto inspira música, em pé novamente trilho o circuito do que me é possível mover. Repito. Repito algumas vezes e em instantes isso também se exaure.
Sento… pés descalços no silêncio do quarto, arranho o chão em contagem simples e direta de shuffles, taps. Balls. Crio imagens, produzo sensações de um estágio de vida que se faz presente na ausência do possível necessário. Falo do possível como uma necessidade de vida, de impulso, de movência, querência, essência. OBS: Gosto demais de palavras que após seus radicais sucedem “ência”. Já perceberam como são lindas? (Pausa).
Esse texto deveria dar conta de uma escrita sobre a comemoração do dia internacional do sapateado, o 25 de maio. Deveria, no momento não estou certo de que será possível.
Me perco entre imagens, memórias, textos, livros, chapinhas frouxas, cadarços quebrados, sapatos descolados… um emaranhado de vida que legitima uma existência transversalizada por outras mil vidas… aqui, entrar e sair; passar e ficar; observar e desacreditar se misturam entre si amalgamando sentires e causando impressões inenarráveis de frustrações, feridas egocêntricas cicatrizadas e a necessidade mais do que permanente de seguir, porque quando penso em sapateado, claramente me vêm a mente e ao corpo uma rajada de coragem, persistência ( já falei que me amarro na “ência”), ousadia e paixão. Levanto um pouco, olho pela janela, após refletir um pouco mais escrevo.
O corpo sente, o ouvido sente, o pé sente. Contestação lógica, óbvia e até boba para qualquer sapateador, no entanto, o fluxo do sentir considera também a constatação da urgência do movimento, este se dá nas mais diversas facetas, das mais variadas formas e com isso produz os mais diversos sentidos. Os meus sentidos, em dança, estão ligados muito menos ao sapateado do que às pessoas que me são cúmplices nesse fazer. Atrevo-me a lançar.
Penso a prática do sapateado como um fluxo de produção de “modos de vida” que legitima existências levando em consideração o modo de pensar e ver o mundo em uma relação muito menos estética do que ética. Talvez porque a forma como sapateamos seja uma forma inerente de se dizer de si e do mundo criando pontes e alianças entre pares e ímpares que se permitem – embora existam diferenças entre si – ainda que por alguns minutos de aula, ou de espetáculos, estarem juntos e ocupados em um só propósito.
É uma modalidade de dança que, a grosso modo, parte de um e vai agregando outros. Constitui coletivos e grupos cujo o principal mote de mobilidade é a cumplicidade com a qual decidem vivenciar, saborear o momento presente, o momento único de realização de determinado som ou sons, em determinado lugar, em determinado dia e hora, ou não! É a própria arte em acontecimento.
Penso o traçado artístico de coreógrafos e bailarinos\sapateadores com Heidegger. Para esse filósofo alemão, no tocante a arte, todo ensaio, toda aula, toda tentativa de se chegar a um resultado estético, já é o próprio acontecimento artístico. Em Heidegger, ensaios, aulas, rascunhos… são as verdadeiras obras de arte, posto que, o ser, em Heidegger, não existe no estático, é no gerúndio que se dá o verdadeiro acontecimento artístico. Estamos sapateando, estamos ensaiando, estamos doando, estamos compondo, estamos optando, com isso estamos fazendo arte! Mergulhando em Heidegger fui me descobrindo, me buscando. Continuo estudando Heidegger, permanecendo.
De onde vejo, constato: (pode parecer mais uma constatação óbvia) – há sempre uma fala, um discurso quando sapateamos. Seja na organização da coreografia, na ordem de entrada dos sapateadores em cena, na escolha da música, na opção de ensaiar mais e até mesmo na opção de ensaiar menos. Ouso dizer que se escolho, falo, opto! E isso constitui discurso, organiza cena e amplifica o que implicitamente dizemos quando estamos no palco (seja ele de que natureza for) ou na sala de aula. Namorando a filosofia paquero com Aristóteles: “O ser se diz de várias maneiras”. Assim sendo, respeitemos uns aos outros, respeitemos. Acolhamos uns aos outros, acolhamos!
Respeitemos uns aos outros para além dos currículos brilhantes, cheios de números, prêmios, viagens, nomes difíceis. Não quero com isso dizer que devamos abrir mão de celebrar nossas histórias de vidas, trajetórias artísticas muitas vezes caras e dolorosas, cheias de sacrifícios, barreiras, pedras no caminho e uma imensidão de “nãos” a nós distribuídos de forma gratuita e leviana ao longo do caminhar.
Falo, eis o ponto primordial, de nossa disposição genuína para perceber e acolher o que está ao nosso lado e muitas vezes não conseguimos enxergar, não conseguimos dar a mão, uma palavra, um copo dágua que mate a sede do conhecimento e possibilite parcerias. Na mesma proporção do ensinar, está a proporção do aprender, já nos disse Paulo Freire. Descobrir esse estado de prontidão ao outro é libertador e promove crescimento humano. Informo de forma repetida, porque a repetição é uma forma de realizar “alcances”: Estar pronto ao outro promove crescimento humano.
Penso com o auxílio de Gilberto Gil, metáfora repleta de realidade. Suspeito que, estar à disposição do outro é o ponto de partida para uma relação minimamente bonita, empática e, por que não? inesquecível. Gil nos pede: “Traga me um copo dágua tenho sede, e essa sede pode me matar, minha garganta pede um pouco de água e os meus olhos pedem teu olhar” Pergunto: “O que acontece perto de nós a título de sapateado?” “Como olhar menos para mim e o que eu faço e direcionar o meu olhar para outras perspectivas de colaboração, atenção e acolhimento?” “Como oferecer um copo dágua?” Se essa reflexão não fizer sentido, acredito que sinceramente será preciso repensar o nosso lugar no mundo não é mesmo? suspeito mais uma vez que, em se tratando de arte, seja ela qual for, nunca, mas nunca mesmo deve ser apenas sobre mim. Se assim o for, há algo de errado. Daí a necessidade, de se repensar processos formativos, relações de ensino-aprendizagem, festivais competitivos e uma celeuma de pontos que não cabem ser discutidos aqui. (Pausa pra o café)

2. O sapateado em período de isolamento – algumas questões.

Em tempos de isolamento, parece-me que o zoom para as fragilidades humanas se amplifica…. Literalmente tudo fica maior: medos, inseguranças, saudades, carências, ansiedades, a quantidade de remédios… tudo se amplifica. E com isso a capacidade de se reinventar também se dá de forma amplificada.
Observando daqui (quarto, janela, computador, redes sociais) tenho percebido o louvável esforço de sapateadores pelo Brasil e pelo mundo de se reinventarem através de aulas, cursos, seminários, lançamentos de livros, ensaios, bate-papos sobre sapateado e tudo me parece tão próximo e (por uma questão bem particular) tão distante. Lanço aqui algumas perguntas.
Pergunto porque a intenção é dividir as inquietações, pensar junto: “Conseguiríamos viver sapateando se essa forma que estamos sapateando hoje, através de lives, fosse a única maneira de se manter sapateando?” “O que se perde nessa metodologia de ensino?” “Tem ensino de sapateado nessa metodologia?” “É possível ensinar os primeiros passos através de uma live?” “O que se ganha?”.
Trago aqui a Mestra Cintia Martin para nos lembrar que: “Para se ensinar, é preciso ter consciência de uma série de itens, como: conhecimento profundo da técnica, a história e a origem do sapateado, terminologia correta, noções básicas de anatomia e noções básicas de música. Além disso, muita paciência, disponibilidade, disposição, criatividade e humildade”. (Trecho retirado da apostila TOQUES: VIVENDO, APRENDENDO E ENSINANDO O SAPATEADO). Curiosamente, o título de sua publicação traz memória Heideggeriana.
Quais implicações, a sugestão de Cintia Martin trazem para o atual cenário de ensino do sapateado no Brasil? Seja ele on-line, seja ele presencial? Estamos prontos? É possível? Há outras considerações registradas para as competências de ensino no âmbito do sapateado?
Cá estou refletindo sobre essas questões simplesmente porque: 1. preocupação com um método que me parece humanizado e eficiente que é o corpo a corpo; 2. Caretice minha, assumo e assumo que minha forma de olhar para isso pode ser um problema sim.
Estou na vida, como em Heidegger e como em Martin: vivendo, tentando e aprendendo. Gostaria muito de discutir sobre isso porque me parece bem claro que já existe um mercado aberto para essa metodologia de ensino. Não é uma crítica, busco entender. Quanto mais formas de se fazer chegar o sapateado as pessoas, melhor, para todos nós. No entanto: “Que tipo de sapateado chegaria às pessoas no formato online?”
De todo, acho importante atentarmos para o fato de que existem metodologias diversas, cabeças diversas, pessoas diversas. Seus fazeres dizem muito de si, como já colocado a cima, importa, entretanto, que pensemos em formas de agregar, presencialmente ou virtualmente. Mas insisto, curiosidade mesmo: “É possível? Através do online?”
Acredito na presença física como potencializadora de aprendizagens, porque aprender tem a ver com o olhar, com o fazer junto, com ouvir a respiração, com o manuseio do corpo em algumas situações, com o suor respingado, com o chão dividido, com a troca de sons, com o papo descontraído que acontece ao amarrar de cadarços com o colega ao lado, com a combinação da cerveja logo após e ainda: com a relação intrínseca entre coragem e medo, vergonha e ousadia. Quem nunca tremeu de nervoso em uma sala de aula de sapateado com certa insegurança em executar sequências de aula? Faço um contraponto: no modo virtual, essa insegurança diminui?
Que fique entendido desse escrito que, a intenção não é desqualificar, negar, anular o que o momento de isolamento social nos oferece – eu não teria estudo ou conhecimento suficiente para isso, estou buscando saber – Mas antes de tudo criar conexões entre o que fazemos com o que fazemos e da forma que fazemos. Importa olhar para isso buscando formas de fortalecer outras metodologias e modos de ensinar e aprender, acredito que enquanto professores (em algum momento todos o somos) seja importante estar atento.
No meio da problemática aqui discutida, existe a velha questão da desigualdade do país que exclui alguns alunos por falta de acessos, computadores, celulares, internet… temas e questões para um outro momento. Mas que não fechemos os olhos e os ouvidos para as desigualdades. Elas, mais do que qualquer outra situação, também necessitam de olhar, cuidados, empatia… acolhimento.

3. Celebremos um ano inteiro: É possível, é necessário

Celebremos o 25 de maio. Há muito o que celebrar. O Brasil, grande e diverso traz na sua história do sapateado as marcas de vivências que ultrapassam a lógica do tap dancing americano. O nosso país traz em sua cultura de povos um acervo grande e vasto de sapateios que, se diferenciam do tap dancing americano devido o uso de chapas de metal nas solas dos sapatos por lá usadas.
Bastante polêmica a suposição de que o Brasil é um país que sempre sapateou. Mas observemos: O frevo, o xaxado, o samba, o maracatu, as bandas cabaçais do interior do sertão do Cariri, as danças de reisado, a chula, a catira são danças que por si só têm sapateio, têm sapateado.
Sem desejar reabrir o ciclo das polêmicas sobre a questão, continuo suspeitando que, o que difere nossos sapateios do tap dancing americano é a ampliação do som através das chapinhas de metal. Valéria Pinheiro (Ce), em décadas de pesquisa em sapateado no Brasil, já desmistificou de forma brilhante essa questão, rompendo barreiras e fazendo a América perceber que o sapateado também se legitima de forma potente no Brasil sem ter como parceira fiel apenas o jazz, o lind hop, o blues. Lindo trabalho. Obrigado Valéria Pinheiro.
Importa, importa muito dizer que, no que diz respeito a um “sapateado brasileiro”, não se trata de pegar determinada música: xaxado, samba, frevo, ou outra qualquer e criar uma sequência lógica de passos dentro de uma contagem binária que caiba dentro da partitura musical. Está implicado aqui, o trabalho árduo de pesquisa de movimentos de pés, dinâmicas, volumes e velocidades que dialoguem de forma coerente com a música brasileira. Longo e exaustivo processo, muitas horas de estúdio, muitas horas seguidas com o sapato de sapateado no pé.
Assim como Valéria, outros nomes não menos importantes traçaram ao longo dos anos formas de contribuição para o desenvolvimento do sapateado. Cintia Martin talvez tenha sido a primeira brasileira a se preocupar em registrar dados, metodologias de ensino e conhecimento musical para estudantes. Além disso transcreveu exaustivamente a nomenclatura do sapateado, buscando facilitar o acesso quando ainda não sabíamos a diferença entre um toe drop e um heel drop, suspeito que através de Cintia a gente deixou de falar “ponta calcanhar” ou “pisa pisa”. Obrigado Cintia Martin.
Eu não planejei trazer nomes ou particularizar homenagens porque sempre corremos o risco de ser injustos, mas não dá para falar do sapateado no Brasil sem falar também do Mestre Steven Harper que com seu conceituado TAP in Rio abre portas para sapateadores jovens aprenderem e descobrirem o sentido do sapateado através de aulas com professores, em sua maioria, brasileiros. Bia Mattar tem um papel ímpar na disseminação do sapateado enquanto linguagem brasileira, pois em Floripa foi ela a pessoa que apresentou outra possibilidade de sapateio, fugidia do jazz e do blues. Obrigado Steven Harper. Obrigado Bia Mattar.
É um recorte. Esse escrito não daria conta de agradecimento algum, são muitos feitos que esses profissionais executaram e continuam executando no país para se manter viva a paixão e o fogo, o desejo de realizar sapateado. Precisaria agradecer também a Marchina, Maurício Silva, Stella Antunes, Amália Machado, Christiane Matallo, Flávio Salles (in memória), Kika Sampaio, Luiz Baldijão, Rachel Cavalcanti, Vera Passos, Thiago Marcelino, Flávia Costa. Me perdoem a injustiça de deixar alguém de fora, não é intencional.
Alegrias somadas, passos divididos em aulas, mostras, cursos… há em mim um imensurável desejo de que essas trajetórias se perpetuem. Que o sapateado em nós não morra. Que resistamos frente aos incontáveis nãos que recebemos ao longo da vida, ao longo da carreira. Para isso invoco e convoco aqui as gerações pós-mestres, sapateadores que delineiam um outro tempo de sapateado, traçando pontes, conectando histórias, geografias e pensamentos. Descobrindo fazeres.
Saúdo aos que estiveram em algum momento comigo como alunos ou colegas de trabalho. Hoje celebro também você Giuliano Antônio, Fernando Flesch, Leonardo Dias, Renata Defina, Marina Coura, Dudu Martinez, Melissa Tannus, Cinthia Pequeno, Gisella Martins, Bianca Moreno, Rafaelle Oliveira, Juliana Castro, Juliana Garcia.
Toda a minha reverência à Cia dos Pés Grandes pelas parcerias, pela trajetória, pelo atrevimento e teimosia. Celebro o amoroso sapateado que partilhamos em via de mão dupla, o encontro potente e o desejo infindo de fincar o pé nesse chão duro que acaba amolecendo de tantos afetos. Com vocês o sapateado se faz poesia e acalanto como em um poema de Manuel de Barros quando diz que: com vocês “eu queria crescer pra passarinho”. Obrigado, muito obrigado Rodrigo Silva, Edson Sousa, Henrique Casimiro, Dudu Abreu, Fabinho Vieira, Pedro Júlio Roque, Lucas Teófilo, Rubéns Lopes, Jota Nogueira, Pedro Moreira, Adonai Elias, Anael Guimarães, Mauricio Batuta, Carol Benjamin, Angélica Nunes.
O dia 25 de maio é o dia de aniversário de Bill Bojangles, por seu feito o celebramos e o rendemos reverências inquestionáveis. Por vossas obras, por vossas histórias, por vossos fazeres eu também celebro o dia do sapateado em 08\06; 06\11; 14\1; 11\03; 10\12; 16\07, 26\08; 21\12; 09\11; 06\12; 06\06; 15\02; 30\11; 11\07; 29\10; 24\06; 05\05; 30\08; 21\05; 17\11; 03\05; 13\05; 28\09; 04\08; 19\09; 14\04; 24\11; 12\02; 29\03; 24\01; 31\10; 19\12; 03\03; 14\12; 13\09; 15\05. Dias de nascimento, renascimento, invenção e reinvenção do sapateado brasileiro.
Nesse dia 25 e por todos os outros dias de celebração do sapateado me dispo de pudores, medos, egos e orgulhos, erros e acertos e me rendo com toda gratidão e amor a vocês que escrevem essa história de forma idônea, diversa, bonita e ímpar. Desejo vida-longa a esse caminhar, desejo perseverança. Que sentemos nas pedras encontradas no meio do caminho para melhor pensar como removê-las. Desconfio que a felicidade plena não existe, mas acredito que alegria e coragem nos elevam a patamares de sensações deliciosas, extremas. Sigo com vocês, sapateando para mexer o mundo. É uma alegria fazer parte disso. Cada tempo a seu tempo, porque como nos ensina Clarice: “…em matéria de viver, não se pode chegar antes…”

Evoé, Axé, Obrigado.
Heber Stalin




terça-feira, 31 de outubro de 2017

sendo confuso...


Congregar: Ficar junto, juntar-se, reunir-se, unir-se, juntar-se, ligar-se, misturar-se.
Tenho pensado de forma muito cuidadosa que, uma opção de vida que se realiza no exercício de construção de um “estar junto” diz muito de mundo, de qual mundo se escolheu cultivar, de qual mundo se optou viver. Minto, refaço: diz muito do que tenta-se realizar enquanto vida, tentativa de exercício de liberdades e verdades que se confundem com exotismo, beira, margem, ilusão de ótica que tenta sintonizar, de maneira confusa e violenta, poiesis múltiplas. Para alguns olhares isso é pura loucura, inexistências.
Não. Uma vida não é só aquilo que entendemos como realidade, a vida também é utopia, poesia, ilusão… alegria(?), dor(?). Em um coletivo esse exercer a vida é um turbilhão, confusão de imagens e sons que rimam com desespero e solidão. Porque para ser muitos, suspeito que seja extremamente necessário ser um pouco sozinho.
Importa dizer: querer junto é também querer sozinho. Querer pelo outro gera dor, andar junto consiste também em exercer um pouco de solidão e estranheza, se jogar ao desconhecido segurando a mão do conhecido, se sujar de carvão e pó para fazer uso de sabão e água, suco de limão com doce de leite… o que vaza disso é justamente a capacidade de suportar o peso do outro… algo como resistir junto. Resistir talvez tenha a ver com seralegresozinhodevezemquando. Disso é preciso lembrar. Isso é urgente exercitar.
Tenho medo de relações tempestuosas e demasiadamente intensas… aquelas que o beijo na boca mais parece um pedido de casamento, juras, tesão e gozo em excesso (sem tirar o mérito e a delícia do prazer do gozo), é preciso atenção. Gosto da expectativa, de todas elas… da dúvida de qual roupa usar para um encontro, do anseio pelo toque, do coração acelerado, da música cantada alta de olhos fechados ao pensar em quem tem te tirado o sono mas te aquietado o coração.
Me toma uma impressão de que, relações esvaziadas são relações que não produzem junções. Fico me perguntando o que nos leva a trilhar caminhos e fazer opções por relações que se realizam de maneira aligeirada, imprecisa, sexuada em demasia e extremamente rasas de sentidos. Porta rolante de entradas de bancos. Corrimão de escada… um para todos.
Gozar perdeu o sentido… relações parecem dizer muito de si e de seu tempo pela contagem de gozos, de curtidas em redes sociais, aplicativos de encontros. O mais estranho é: Nos acostumamos a isso, nos sujeitamos… parece-me que uma reflexão mais aprofundada sobre isso nos torna caretas, atrasados… velhos.
Em relações de longa duração… até mesmo nestas, a vida e a permanência parecem se adensar e se ritmar ao passo da indiferença, da apatia, da invisibilidade do outro. O que estamos a fazer quando olhamos para isso e não conseguimos movimento? nos rendendo a contemplação do que está estabelecido como único possível? Não consigo responder! Mas suspeito que é necessário mexer, cutucar, puxar, empurrar, chamar, propor.
Há momentos, e estes são muitos, em que tudo o que é desejo é também desespero e inabilidade de lidar com o que se apresenta como real. Isso causa dor se você se importa, se você olha de perto. Caso contrário a vida segue o rumo manco e mudo em direção a um nada. O esvaziamento de vida, talvez tenha a ver, em algumas situações, com o uso excessivo e a vivência esvaziada de situações que nos sugam, degradam e desumanizam. Sobre isso, urge também, estar atento.
Não se agrega através de descartáveis, agrega-se através de partilhas, construídas cotidianamente, em cantinhos descuidados ou/e em espaços de legitimação do exercício de liberdades. Faz-se necessário olhar para isso, e perceber até onde conseguimos e queremos a partilha, o agregar, o estar junto e tudo o que significa o verbo. Parece bem bobo, mas aviso de forma repetida e plagiada: “As aparências enganam”.
Existe um misto de inquietação e incertezas aqui, lago de águas paradas que juntam paragem e não propõem movimento. Sobre isso e apesar disso é necessário se manter firme, rindo quando possível, chorando quando necessário e produzindo alegrias quando o peito e a boca pedem. Existe também confusão, indecisão, disritmia, caos… imagino o caos como movimentos exagerados e inaudíveis, essa imagem me angustia e me emite tensão.
Não… não estou louco, eu até acredito que esteja bastante lúcido, pois tenho olhado para isso como um garoto que senta abraçando as pernas de frente para o mar e o observa… diferente do lago de águas paradas, o mar é movimento e incita seguir. É disso que se trata, é disso que se vive quando o peito aperta, a mão treme e a sensação de queimação por dentro surge de forma paralisante.
Quebrar as correntes e correr… peito e cara ao vento, pés descalços… talvez assim a voz se movimente aqui dentro e “ais” sejam emitidos… os “ais” são importantes… são palavras mudas que dizem da gente, do nosso lugar, do nosso tamanho, do nosso momento. É importante gritar “ais”. Um “ai” é um testemunho de que dentro da gente ainda existe força, para resistir, para resistir, para resistir. E não esqueçamos, sigamos: sendoalegressozinhosdevezemquando… mesmo que por uns tempos apenas “de vez em quando”.


domingo, 10 de setembro de 2017

Dos dias de Setembro

Aqui dentro… um silêncio ensurdecedor. Tenho tentado nos últimos dias traçar estratégias que me abstraiam do escárnio da realidade. Como um cadeado de chave perdida, me sinto fechado, preso, emCADEAMENTO.
Entro em meu quarto e aparentemente tudo para. Uma sensação de que as almofadas dialogam com a escrivaninha e os tapetes tentam desestabilizar os calçados sobre eles repousados. Como uma grande brincadeira vista apenas em filmes infantis… disso eu sorrio, eu sorrio, balanço a cabeça negativamente sorrindo muito, corro para a cozinha… água, muita água, mais água. De volta ao quarto: Silêncio. Apatia. Segredos nas gavetas, meus barulhos pendurados em uma varanda como a me lembrar que, ainda que haja noite o dia traz riso. Quase pego os tapetes discutindo com os calçados. O que é a loucura? Onde mora a lucidez?
Mãos frias, olhos tristes, ressaca de dor vivida, não só minha, mas minha TAMBÉM, cismo, sou cismado com essa palavra. O “Também” é uma palavra perigosa. Linda… porém perigosa, pois trata de mais um, mais dois, mais três, mais trinta. Fazer parte de um “também” é fazer partilha, é par-tilhar, par – trilhar, par-tir-lar. Nessa ambiência eu me encontro. Ela me interessa. O meu interesse acaba creditando o “Também”. Tudo bem me rendo, preciso de você também! (Aqui sim, duplo sentido).
Em tempos líquidos, cercados de água por todos os lados, me atrevo a não perder a mania de ser inteiro, de ser sólido, mesmo que para isso eu precise, em algumas situações, ser mais do que pedra, precise ser rocha. Afinal… quem disse que o gelo não fere na mesma proporção que uma rocha? Me tome a primeira boia quem nunca pensou estar em sólidos e se viu perdido em águas. Afogado, afundado, encharcado, trêmulo, espirro, tosse, febre… mas limpo… muito limpo! (Aqui estou eu).
Ahhhhhh que vontade de andar de pés descalços em uma rua de calçamento, chupar dindin com as mãos sujas, tirar meleca do nariz e passar na roupa (daquela maneira que a gente faz e que nos enche de prazer), vontade de contar moedas, olhar as estrelas, correr um pouco a passos largos (também fazíamos quando crianças), sentar no meio-fio de pedra e comer broa, desejar um iogurte, imaginar como é o beijo na boca da pessoa desejada. Afirmo: Isso é mais do que necessário.
Hoje pela manhã ouvi um disco do Janeci, em uma das músicas ele solta: “A gente é feito para acabar… a gente é feito para caber”. Concordo com a primeira frase porque a lógica da finitude humana é inquestionável. Acho infeliz portanto a segunda frase, porque se fazer caber é se forçar a algo. Não. A gente não foi feito pra caber. A gente já chegou – ou já deveria ter chego – ao momento em que podemos identificar sem sofrimentos, culpas ou mágoas se cabemos ou não em determinadas situações, em determinados espaços, em determinadas vidas, em determinados empregos, em determinados bares, em determinados corpos, em determinadas sexualidades, em determinadas, determinadas, determinadas, determinadas… e inclusive nas não tão determinadas assim. (Não gente. Eu também não entendi muito!)
Ontem eu chorei, antes de ontem também… uma pela branca me faz chorar, lapsos de lucidez que se manifestam em minha mente me revivendo suor, riso, dentes, tatuagens… agressões delicadas de um amor que é meu TAMBÉM.
Junto ao meu amor eu tento entender o que é o caber, me pergunto de maneira sôfrega o porque da lucidez ser tão necessária em tempos tão sórdidos e caóticos. Onde está a lucidez? Acho que já perguntei, mas me digam: Como ela se manifesta? O que em mim, em nós é lúcido?
Refletindo sobre os primeiros dias de setembro me abato, me arrebato com as desestabilizações por ele propostas, me sinto tapete, me sinto calçado. Um entra e sai de gentes, carnavalesco que sou me visto de folião e abro o coração para as alegrias… algumas efêmeras, algumas apenas de aparências, mas todas potentes, em sua maioria sóbrias, das não sóbrias eu sorrio e tento não violentar a embriagues e nem me violentar ou violentar alguém através delas. Estar embriagado é um fazer parte da vida, da dança, da alegria… todas essas citadas aí acima.
Mania esquisita essa de ser gente. Que coisa mais desagradável essa do sentir, que vergonhoso chorar escondido, que constrangedor querer ser forte quando tudo o que se manifesta é fragilidade. Outra maneira muito feia é a de calar quando se precisa falar, sorrir quando se precisa chorar. Parar quando se quer seguir.
Por aqui eu queria dar alguns recados, pistas que provam, senão o meu amor, a minha intenção de amar. Por hoje eu queria sentar em silêncio e ver a lua, contar estrelas, dormir de rede, segurar a tua mão, te agarrar por trás e dizer que tudo vai ficar bem… porque existe um “para sempre” dentro de nossas possibilidades. Eu queria também poder olhar nos olhos dos que magoei (se eles existirem) e dizer que não foi intencional, que existe um pedaço de mim que é gente, nem tudo em mim é bicho. Dizer aos que me esperam e me esperaram que eu sou pássaro, que tudo que voa, que tudo que tem asa sou eu também… mas eu sinto, eu sinto, eu sinto, eu sempre senti. Eu sou um sentir! Eu sinto. Eu agradeço amor, eu agradeço Paixão e eu agradeço Tesão. Vou continuar te amando… vou continuar cuidando de vocês… eu vou te comprar um DVD porque te amo, eu vou te pagar uma cerveja Porque você me faz bem e eu vou te amar com o tempo, será inevitável… eu vou continuar comprando tua bolacha… aquela que você gostou… porque você se tornou especial para mim… eu vou continuar ouvindo – com restrições – o Janeci, pois você sabe como eu o acho bobo… eu continuarei sendo seu amante… porque a vida nos reservou esse lugar… eu continuarei a te visitar quando me quiseres porque entendi que em tua casa a porta estará sempre aberta a mim e ao meu corpo e meu tesão. Mas entendam: É possível que hajam impossibilidades… nenhum desses atos se legitimam apenas por mim.
Olhando para a almofada amarela da minha cama ela me alerta mais uma vez: Heber, Heber, Heber: Em matéria de viver não se pode chegar antes”.
Quase lúcido…mais água, mais riso… um pouquinho só mais de choro e um dormir juntinho de minha almofada amarela.








quinta-feira, 25 de maio de 2017

O sapateado em nós!


Todo ano, ao se aproximar o dia 25 de maio eu fico ansioso. Aquela ânsia de criança que deseja um doce do pai ausente, um presente da madrinha que vem de longe, ânsia de passar a mão na cabeça de cachorrinho novo, desejo de que algo se revele, algo inesperado, súbito, potente de alegria.
Passei o dia de hoje revendo com alegria, rebuscando em minhas memórias o encontro que tive com a arte do sapateado, o compromisso que assumi de forma espontânea e ingênua com a arte que me alimenta de alegrias e desafios cotidianamente.
Lembrei com riso no canto da boca e balançando a cabeça das inúmeras vezes que relembrei sequências de aulas em paradas de ônibus e estações de metrô, muitas vezes fazendo desses espaços verdadeiras salas de ensaio (quem nunca praticou uma sequência de sapateado à espera de um ônibus que atire a primeira pedra). Fortaleza, Rio, Sampa, EUA, Colômbia, África… tantos lugares!
Lembrei também de quando, em 2002 (se não me falha a memória), encontrei em uma sala de reuniões em Chicago nos EUA o sapateador Van Porter, que me viu com os sapatos de sapateado nas costas e me perguntou se eu sapateava, eu disse que sim e me pediu então que o mostrasse. Calcei o sapato e mostrei um pouco do samba que aprendi com Valéria Pinheiro. Aquele momento foi mágico, não sabia quem era Van Porter, não sabia do grande sapateador que ele era e quando lembro que me permiti “ter algo a mostrar” me sinto envergonhado, no bom sentido. Lembrei também das noites de insonia com Lane Alexander em quartos de hotéis ao longo do país, tínhamos mania de procurar espaços em hotéis para um pouco de prática do sapateado e criação de algumas sequências juntos!
O bom da vida é que ela segue e ela segue com um propósito, não segue à toa. Fiquei rememorando as aulas que tive com Acya Gray, Sam Weber e Diane Walker, por intermédio de Lane Alexander que também me ensinou sobre sapateado, vida, generosidade e amor.
Antes de tudo isso lembro uma quarta-feira fim de tarde nos arredores da Praia de Iracema em Fortaleza, no Teatro da Boca Rica o encontro com Valéria Pinheiro, seus olhos famintos a convidar para aulas, ali tudo começou. Ali tudo recomeçou, pois nosso “estar junto” vem de outras vidas. Certeza posta!
Reflito 1: Devemos amar o sapateado como possibilidade, acidental ou não, de encontros.
Cia VATÁ foi minha escola e minha universidade, o sapateado ali desenvolvido lançou-me a auto-desafios cotidianos, provações terrenas de desejos e descobertas que iniciam e finalizam na técnica de um sapateado que se mostra potente e íntegro porque se diz de forma peculiar, organizando o caos que pode ser entendido como reflexo da própria vida. Lugar de construção, trocas, aprendizagens, amores, medos e pequenas confusões. Traçados de vidas que se aglomeram a formar colchas de retalhos que propõem sentido único: a coragem.
Reflito 2: O sapateado agrega, congrega, prega, APEGA.
Atrevimento de dois: Cia. Do Barulho, primeira instância de criação em sapateado com Aspásia Mariana, estudos, tentativas, editais, um Mercado que não mais do que pinhões nos fustigava e cutucava dizendo que ali também havia amor. Partilha, parto, partida.
Reflito 3: Sapatear a despedida também é sapateio.
Entendi desde sempre que o sapateado poderia (sonho com isso) servir como mola de mobilização de pessoas, porque o sapateado é alegre e democrático, sua história vem de resistência a opressões e violações, é negro, é feminino, nasceu pobre e nunca achei justo que se tornasse propriedade de quem tem posses e pode pagar aulas em academias, viagens e festivais. Não. Não deve se manifestar apenas dessa maneira. Me incomoda MUITO que as pessoas o vejam, se infectem dele e ao encarar a realidade de sua aprendizagem (na maioria das vezes dentro das academias) se sintam frustradas. Ouço bastante lamentações de pessoas do tipo “sempre achei lindo, mas nunca pude pagar”.
Sabemos que nós sapateadores temos formações caras, cursos são caros, aulas são caras, viagens são caras, os próprios sapatos são caros, o acesso não se dá de forma simples e não acho que isso seja culpa dos profissionais, na verdade não irei me alongar nesse mérito pois não é esse o objetivo.
Reflito 4: É preciso propor a acessibilidade ao sapateado.
Acessibilidade tem a ver com a possibilidade, possibilidade vem de “possível”. O que estamos a fazer para tornar possível o acesso ao sapateado? Como o sapateado está na periferia? Refaço: Ele está? Acredito que em algumas cidades essa possibilidade aconteça de forma legítima, mas aqui em Fortaleza não há fomento para essa área da dança e isso me inquieta.
Hoje, fim de tarde, eu quis calçar o sapato e ir fazer aula, trocar aula em um bairro da periferia, esse foi meu desejo de hoje para comemorar esse dia tão bonito, súbito lembrei: Não há esse lugar! - Fortaleza é um lugar de não lugares!
Nunca coube, nunca consegui me perceber em Festivais competitivos. Um adendo: O fato de não caber não quer dizer que eu seja contra. Porém, há uma instância de criação para os Festivais competitivos que acho violenta, a perspectiva de me colocar na condição de “ser pior” ou “ser melhor” do que o outro me assusta, pois não acredito que esse lugar seja um lugar confortável, prefiro acreditar que não. Esquizofrenia. Maltrata, exclui, ignora, sem levar em consideração muitas vezes o próprio sapateado e sua história de nascimento, sua ontologia. Assim como a história de vida das pessoas que fazem as escolas de sapateado que competem… longa discussão…
Reflito 5: O que devemos amar é o sapateado em nós, não o prêmio em nós!
Eu serei sempre aquele que, embora calado e tímido, estará sempre na torcida pela popularização do sapateado. Já trabalhei em algumas academias de dança, local também que não me encaixo pois a instância de produção de sapateado em academias tem uma dinâmica produtiva, quantitativa e isso também me agride.
Me agride porque existe uma maneira de fazer sapateado nas academias que não tenho habilidade para executar. Tenho profunda admiração por professores de academias que conseguem montar um trabalho para uma competição por exemplo que deva durar 2 minutos e meio ou algo assim. Não consigo cronometrar o que meu pé quer dizer. Reforço: não estou dizendo que não acho admirável, estou dizendo que: Eu não sei fazer.
Reflito 6: Reconheço o sapateado como a possibilidade de ser inteiro!
Há um movimento no nosso país que tem instigado as pessoas a viverem Cias. De sapateado, isso é muito positivo pois nos faz pensar de forma agregada. Quando pessoas se juntam para sapatear a alegria parece se instaurar, permanece ali uma ambiência fluida de trocas que estão para além do som produzido pelas taps, é de vida que estamos falando ali, não só de sapateado. Isso é bárbaro, isso é de uma potência indescritível.
Eu gostaria de hoje solicitar aos meus amigos sapateadores que em algum momento pensassem suas ações em sapateado em benefício de algum segmento social que não fosse apenas a competição. Pergunto: Como o que fazemos em sapateado pode ser útil a alguém? A população idosa? À população de pessoas doentes em hospitais? À população de rua? À crianças vítimas de exploração de trabalho e sexual? À comunidades carentes de cultura?
Já pensaram em algum momento sobre o que mais podemos fazer com o sapateado que temos? Tenho me inquietado muito com isso e não estou falando de caridade. Abrir espaços, desflorar matas virgens, usar calçadas e praças, sair dos shoppings centers e dos grandes teatros ainda que por momentos breves.
Estou a falar aqui de devolver ao mundo o que o mundo de forma tão generosa nos deu ou que lutamos muito para conquistar. Particularmente ando muito cansado e sem interesse em viajar para dar aulas sem um propósito outro que não seja aquele baseado no princípio da agregação, partilha e entrega, papo.
Reflito 7: Para que(m) eu sapateio?
Devaneios disseminados, sigo pensando e repensando o sapateado como uma forma de estar no mundo, como uma forma de não andar sozinho embora eu reconheça que, aparentemente somos muitos, mas olhando de perto somos bem poucos.
Eu gostaria de hoje poder abraçar aos amigos/ídolos do sapateado brasileiro que encontrei ao longo de minha caminhada, reforço que o desejo pelo encontro é uma constante em meu coração.
Obrigado a Cia. Dos Pés Grandes por ser o motor de incentivo, alimento do meu desejo e da minha alegria, sujeitos cúmplices da partilha deliciosa da alegria e afetos que o sapateado propõe.
Obrigado à Cia. VATÁ, por ser casa, lugar que retorno sem precisar bater na porta ou perguntar se “posso?”
Algumas referências:
Cintia Martin, me encontrou no Rio de Janeiro, papeou, sorriu, abraçou e acolheu, obrigado por você ser sempre tão generosa, ouvinte, atenciosa… obrigado pela sua leveza, passarinho.
Steven Harper, querido, abridor de portas, obrigado pelo TAP in Rio, por confiar no meu trabalho, por ser gentil, por possibilitar tantos jovens a se tornarem professores no Festival que é a maior vitrine do sapateado no Brasil.
Adriana Brunato, pela ousadia da CBS – Cia. Brasileira de Sapateado – tempos lindos e inesquecíveis, não há como esquecer a sua trajetória.
Bia Mattar, amiga, mestra, inesquecível as nossas aulas em Floripa em tempos de paixão, quando tudo era azul, olhos e mar.
Juliana Castro, obrigado por Brasília sapatear… Tribo das Artes… saudades… bons tempos!
Julhiana Garcia… que sapateia um Ribeirão de todas as cores...
Bianca Morena e Luciano Oliveira, gentileza… alegria e luta por um Recife que sapateia.
Lane Alexander, Katherine Krammer, Lynn Dally, Max Pollack, Roxane Semadeni, Acya Gray, Van Porter, Sam Weber all my love to You guys… always… all my gratitude.
Trabalhei com pessoas incríveis, profissionais que tenho imensa admiração, aprendi e aprendo muito com vocês, por isso também agradeço.
Agradeço a todas as escolas de sapateado que me convidaram, que me convidam para ministrar workshops e cursos, não listarei aqui para não correr o risco de esquecer e cometer injustiças.
E não poderia deixar de ser diferente, Valéria Pinheiro, enquanto houver vida haverá nós! Te amo com imensidão de universo e leveza de nuvem. Mãe, amor.





quarta-feira, 10 de agosto de 2016

INCOMPLETO


Clicks de Carol Benjamin.


Estar junto é muito bom, mas dói.
Porque estar junto consiste em aproximação excessiva, transborda riso, transborda suor, transborda adentramentos. Instância de permanência lúcida que legitima loucura.
Sim: Loucura. Porque ser lúcido e não desistir de possibilidades existenciais e modos de vida constitui momentos de loucura… como rasgar roupas e correr pelado, como saltar de braços abertos em aridez, cimento, secura, fratura, cabeça quebrada.
Minhas mãos estão cansadas e trêmulas, minha barriga dói, minha pele queima, perco o sono sem perder os sonhos.
Entre empurrões, desejos, barulhos, frustrações o que há de virilidade aqui se transmuta em feminino, insanamente, como louco delirante endureço entre nós, trago dores nos pés e riso na alma. “Estar junto” tem a ver com perder-se.
É de dança que falo, não de falos. É de dança que me dispo, me visto, escuto palavrões, vejo expulsões, rejeições e nãos.
Surge um buraco em meu peito quando não alcanço, quando não os alcanço. Porque não estar junto me faz perder, escuro, prisão, desencanto.
Nasce em mim alegria quando entro ali – barulho interno de notas erradas – mas também há medo, agonia. Nasce em mim desespero quando há ausência de um, porque ser um é ser parte imprescindível da música que crio.
Muitas vezes eu me sinto como se eu tivesse dois pés esquerdos, braços em excesso e matemática mal apreendida. A dislexia em mim se transforma em apatia, tarde de sono, bolacha com café, olhos de demente, grande, grandessíssima, enorme confusão: tempo, contratempo, volume, intensidade, velocidade, pausas.
Preciso muito dizer que há voz. Eu sapateio falando, eu falo muito, eu falo demais, eu ocupo tanto a minha boca que devido a isso não sei o que fazer com os meus pés. Mas vejo fortemente em nossa dança os pés pesados de um sapateio brasileiro de Valéria Pinheiro, ha aqui também um par de olhos azuis mais azuis do que o céu, referência de um outro lugar. Baião de dois, baião de dois, baião de dois.
Mora em mim grande parte daquilo que mora em nós e embora não haja apego, há querência. Há o desejo de um estado de “ficância”.
Crateús, Monsenhor Tabosa, Caucaia, Guaramiranga, Maracanaú, Juazeiro do Norte, Fortaleza, Araripina… tudo é Nova Iorque, tudo é grande, tudo tem eu e tudo tem a mim! Cidades visíveis, arquitetura de nosso dançar.
Dudu “O Grande príncipe que traz fartura: ARO ALADE OLA, Rodrigo o empresário, Edson o Vendedor, Pedro Professor, Heber Diretor, Maurício Músico, Henrique Professor, Fábio Comunicador, Adonai Produtor, Paulo Flor, Aspásia Amor, Carol Torpor, Valéria Pinheiro Jequitibá, Carcará. Nós em algum lugar.

OBServando


O filme Como estrelas na terra – Toda criança é especial, aborda questões relacionadas a conjuntura da escola na atualidade e à necessidade de aprofundamento de estudo e intervenção no atendimento a crianças com as mais variadas manifestações de especialidades, não só no âmbito educacional mas no âmbito socioassistencial.
O que mais chama a atenção é o filme se tornar ponto de “especialidade” para os expectadores pelo fato de Ishaan ter seus caminhos cruzados com um Professor que conseguiu fazer a leitura da conjuntura em qual a criança estava inserida e assim traçar metas de intervenção que o levasse a alcançar êxitos. Ora, mas não seria esse o papel principal de todo Professor? Estar atento as demandas da sala de aula, saber lidar com as diferenças e assim buscar oferecer uma educação igualitária e justa para toda a sua turma?
O contexto educacional na atualidade se mostra de forma bastante perversa, a política que inclui os alunos com determinadas deficiências não cumpre seu papel de forma efetiva. A política educacional não oferece capacitações e cursos de qualificação profissional para os professores e esses tentam lidar de forma empírica com as mais variadas diferenças em sala de aula exercendo um fazer artesanal, como colcha de retalhos, uma intervenção deslocada de políticas emancipatórias, apenas atuações pautadas em “achismos” e formas supostamente castradoras pois sem saber como lidar com as diferenças e tendo a maioria da turma para fazer caminhar, este, no momento da agonia da transmissão e construção do conhecimento, exige o silêncio, a tranquilidade, a concentração e a calma dos alunos, ainda que a falta desses quesitos sejam da ordem da saúde, da diferença.
Importante ressaltar que um Professor deveria ter acesso máximo a todas as formas de conhecimento que possam fazer com que seus alunos consigam superar as situações opressoras em que se encontram, os preconceitos e discriminações, o racismo, o classismo, o machismo. Percebe-se dentro da escola de hoje um conservadorismo que chega a ser constrangedor, professores falam mal de alunos – que em sua maioria são crianças em desenvolvimento – são fortalecedores dos discursos que reforçam machismos, racismos, e LGBTfobias, isso sem falar no conceito de belo que chega a ser desconcertante pois esse oprime de forma direta a criança e o adolescente. Outro ponto a colocar é a falta de entendimento dos professores da instância da juventude, pois não entendem o desejo dos meninos por usar brinco, piercings, bonés e o desejo das meninas de usarem roupas curtas, jeans rasgados, batons e cabelo vermelho ou de outras cores.
Ao se depararem com essas manifestações de juventude é muito comum que suas falas sejam referidas nos mais primordiais conceitos conservadores e anulantes, pois passam a tratar de forma diferente os alunos. Muitas vezes podemos até ouvir coisas do tipo: “Projeto de marginal”, “Aquela menina com aquele short daquele tamanho, tá pedindo coisa”.
O professor do filme, conseguiu não só observar, mas enxergou seu aluno com suas potencialidades e buscou exercer uma intervenção humanista pois,

“Uma educação humanista libertadora, na perspectiva freiriana, precisa ter como ponto de partida os fenômenos concretos que constituem o universo existencial de nosso povo. E, a partir desse universo, o desafio dialógico crítico converge para a luta em prol das transformações sociais necessárias e imprescindíveis para atingirmos uma vida mais digna, principalmente para os setores sociais que mais sofrem a opressão ou exclusão.” (ZITKOSKI, 2008)


Na educação, os alunos são “o nosso povo” e investir de forma qualificada na intervenção junto as necessidades dos alunos é concretizar o projeto de educação libertadora de Paulo Freire, pois isso incita liberdade, autonomia e independência. Pontos cruciais para se construir uma vida justa, baseada na criticidade, criticidade essa que os esclarecerá escolhas.
É inadmissível que aceitemos a política educacional que ora se estabelece, esta não atende as demandas dos filhos da classe trabalhadora, a categoria dos assistentes sociais deve se aprofundar na discussão do serviço social dentro da política educacional, sabemos e já discutimos incessantemente que existem demandas dentro da escola que se atendidas pelo profissional do serviço social seriam encaminhadas de formas diferenciadas. Mas como traçar pontos de atuação dentro de uma política que no âmbito do cotidiano é excludente e negligente?
Fico a me perguntar: Como acessar dispositivos de ordem prática que possam fomentar atuações de professores como o que vimos no filme? Indo mais além pergunto: Será que é possível tornar professores conservadores em professores como o de Ishaan? Isso teria a ver com processos formativos? E se pensássemos em processos formativos que levassem em consideração os conceitos da Questão Social juntamente aos da Educação? Quem facilitaria esses momentos junto aos professores? Os Pedagogos ou os Assistentes sociais? Os dois juntos será? Eis alguns questionamentos para uma outra discussão.
O fato é que precisamos ressuscitar Paulo Freire, seu pensamento e sua obra, por enquanto percebo uma grane apatia na escola, na educação, nos professores, me pergunto: Onde está Paulo Freire, pois esse que dizem conhecer não é aquele que desejou por toda a sua vida uma sociedade justa e igualitária, sem opressores e oprimidos.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Obrigado Cia VATÁ




Mãos trêmulas, pernas bambas, suor nas axilas, cegueira, visão turva, demência e instabilidade, algumas sensações atravessadas por mim ao chegar na Caixa Cultural para assistir ao Documentário da Cia. VATÁ. Sensações incitadas por emoções que não conseguirei traduzir em palavras, mas que revelam uma enorme gratidão, amor, respeito e devoção ao legado dessa Cia. que me foi casa (e ainda é) desde os meus primeiros passos em dança, desde que decidi abandonar o sertão central e vir para a cidade grande em busca de realizar o sonho de me tornar artista.
Assistir a trajetória dessa Cia. Me fez olhar para a minha própria trajetória como artista na cidade de Fortaleza, mais do que isso, me fez olhar para a importância legítima da atuação da Cia. VATA ao longo desses anos na cidade de Fortaleza. Constato que uma artista comprometida com o seu fazer rompe as barreiras da língua, do lugar, das geografias impossíveis, dos afetos tristes. Não por ser exótico, mas por ter em suas mãos a incrível capacidade de construir obras que dialogam com o mundo, pois falam de afeto, falam de um lugar, de um afeto ao lugar, de um compromisso com o seu povo e com a sua história.
A dignidade de, como diz nossa saudosa Dona Silton, “seguir o intuito” é algo que exige coragem. Coragem não como ausência do medo, mas como a determinação de acordar todos os dias e inventar possibilidades de existência, e quando não conseguir inventar, tratar de reinvenções, buscá-las em dores, amores, alegrias… driblar as tristezas e se vestir de força… talvez seja isso, seguir o “intuito” talvez seja permanecer no limite da loucura e do desespero, pois ser louco é ser transgressor e o desespero traz transbordamentos, instâncias primordiais para qualquer processo criativo.
Valéria Pinheiro é mundana, ave de arribação, antropofagicamente um Carcará, pois quem teve a honra e o privilégio de trabalhar ao seu lado sabe que ela “pega, mata e come”, Valéria come o outro, se alimenta do outro, gosta de saber como, onde e por quê, tem olhos de menina, jeito de menina, curiosa… abre gavetas, folheia livros, meche em fios, sobe em escadas, pega a vassoura, varre, lava, cozinha… e em toda a nobreza de seus gestos eu vejo dança. Isso a faz um ser tão completo que para gestualizar talvez eu precisasse de centenas, milhares de braços para mostrar o tamanho, simbolicamente.
A Cia. VATA está em festa, muitos fomos, muitos somos, muitos seremos, todos passamos e todos ficamos, VATÁ é água corrente de torneira aberta, rio que corre, não há parede nesse açude, não há fundo nesse poço. Há uma grande porta aberta, sempre a espera do desejo de fazer parte, talvez levemos tempo para entender isso, mas sim “fazer parte, cabe a se deixar fazer parte” e esse entendimento é cabível de vida, mundo, lugar, tamanhos.
Dancei mais de dez anos nessa Cia. que me foi Universidade, lá eu amei, ri, chorei, sofri, aprendi… lutei, caí e me reergui. Fui Cabaçal, fui Ancestral, fui Orixá… suspendi, sambei, sapateei. E esse matulão que me foi ofertado está repleto de boas lembranças, impossível narrar aqui das tantas coisas incríveis vividas, as dores, os amores, os lugares, os países e continentes habitados em nossas andanças, mas impossível também não registrar um agradecimento infinito a essa universidade que me afetou e afeta a vida, o amor, o sexo, o entendimento e principalmente a possibilidade do dançar, a coragem cotidiana, o enfrentamento aos sentimentos esvaziados, aos afetos tristes, aos nãos, a persistência na alegria e na própria persistência. Sim, Valéria e a Cia VATÁ são persistência da persistência, um acontecimento de luta e resistência que devemos nos orgulhar.
Desejemos vida longa à Cia. VATÁ, ao Teatro das Marias, ao sapateado brasileiro, particularmente desejo estar vivo para ir às comemorações dos 30 anos de Cia. VATA no Ceará, e mais uma vez assistir atônito, com vontade de chorar alto (pois baixinho chorei em muitos momentos), vir para casa correndo para deitar na cama e agradecer pelas oportunidades que tive, pelos sonhos que realizei junto, pelas conquistas, pelas viagens que me encheram de possibilidades e descobertas, agradecer principalmente o privilégio de através de Valéria poder descobrir a potência do sapateado e a possibilidade de um sapateado que fale de nosso povo, de nossas casas, de nosso país.
Eu te agradeço Valéria Pinheiro, por ter me feito, por ter me empurrado, por ter segurado a minha mão e me levado para o mundo, eu te agradeço o ensino, a paciência, o olhar amoroso, a permanência, a resistência, o alimento e o abrigo, eu te tenho em mim para todo o sempre, você é a maior curuMÃE do mundo!

Com amor.