1.
Acolhamos uns aos outros
Estou
há exatos 80 dias sem calçar o sapato de sapateado. Tempos difíceis
esses, em que nos damos conta do pesar de tais contagens. Tenho
contado também, entre perdas e ganhos, a quantidade de árvores que
vejo através de minha janela, a quantidade de plantas espalhadas
pela minúscula varanda do apartamento, a quantidade de cds ainda
restante nas estantes de meu quarto, a quantidade de livros lidos, o
dinheiro, o que a falta do dinheiro me impede de contar. Tenho
contado vidas e mortes, desaparecimentos, violações, tenho contado
idas e vindas, nesse mesmo tempo tenho contado esperanças. Assim têm
sido os dias.
Durante
esse período de isolamento, na solidão frutífera de meus espaços,
todas as vezes que a boca seca, as mãos gelam e os pés se
inquietam, eu tomo água; caminho um pouco em círculos; deito no
chão; mãos ao rosto. Paragem. Súbito o som do ventilador de teto
do meu quarto inspira música, em pé novamente trilho o circuito do
que me é possível mover. Repito. Repito algumas vezes e em
instantes isso também se exaure.
Sento…
pés descalços no silêncio do quarto, arranho o chão em contagem
simples e direta de shuffles, taps. Balls. Crio imagens, produzo
sensações de um estágio de vida que se faz presente na ausência
do possível necessário. Falo do possível como uma necessidade de
vida, de impulso, de movência, querência, essência. OBS: Gosto
demais de palavras que após seus radicais sucedem “ência”. Já
perceberam como são lindas? (Pausa).
Esse
texto deveria dar conta de uma escrita sobre a comemoração do dia
internacional do sapateado, o 25 de maio. Deveria, no momento não
estou certo de que será possível.
Me
perco entre imagens, memórias, textos, livros, chapinhas frouxas,
cadarços quebrados, sapatos descolados… um emaranhado de vida que
legitima uma existência transversalizada por outras mil vidas…
aqui, entrar e sair; passar e ficar; observar e desacreditar se
misturam entre si amalgamando sentires e causando impressões
inenarráveis de frustrações, feridas egocêntricas cicatrizadas e
a necessidade mais do que permanente de seguir, porque quando penso
em sapateado, claramente me vêm a mente e ao corpo uma rajada de
coragem, persistência ( já falei que me amarro na “ência”),
ousadia e paixão. Levanto um pouco, olho pela janela, após refletir
um pouco mais escrevo.
O
corpo sente, o ouvido sente, o pé sente. Contestação lógica,
óbvia e até boba para qualquer sapateador, no entanto, o fluxo do
sentir considera também a constatação da urgência do movimento,
este se dá nas mais diversas facetas, das mais variadas formas e com
isso produz os mais diversos sentidos. Os meus sentidos, em
dança, estão ligados muito menos ao sapateado do que às pessoas
que me são cúmplices nesse fazer. Atrevo-me a lançar.
Penso
a prática do sapateado como um fluxo de produção de “modos
de vida” que legitima existências levando em consideração o modo
de pensar e ver o mundo em uma relação muito menos estética do que
ética. Talvez porque a forma como sapateamos seja uma forma
inerente de se dizer de si e do mundo criando pontes e alianças
entre pares e ímpares que se permitem – embora existam diferenças
entre si – ainda que por alguns minutos de aula, ou de espetáculos,
estarem juntos e ocupados em um só propósito.
É
uma modalidade de dança que, a grosso modo, parte de um e vai
agregando outros. Constitui coletivos e grupos cujo o principal mote
de mobilidade é a cumplicidade com a qual decidem vivenciar,
saborear o momento presente, o momento único de realização de
determinado som ou sons, em determinado lugar, em determinado dia e
hora, ou não! É a própria arte em acontecimento.
Penso
o traçado artístico de coreógrafos e bailarinos\sapateadores com
Heidegger. Para esse filósofo alemão, no tocante a arte, todo
ensaio, toda aula, toda tentativa de se chegar a um resultado
estético, já é o próprio acontecimento artístico. Em Heidegger,
ensaios, aulas, rascunhos… são as verdadeiras obras de arte, posto
que, o ser, em Heidegger, não existe no estático, é no
gerúndio que se dá o verdadeiro acontecimento artístico. Estamos
sapateando, estamos ensaiando, estamos doando, estamos compondo,
estamos optando, com isso estamos fazendo arte! Mergulhando em
Heidegger fui me descobrindo, me buscando. Continuo estudando
Heidegger, permanecendo.
De
onde vejo, constato: (pode parecer mais uma constatação óbvia) –
há sempre uma fala, um discurso quando sapateamos. Seja na
organização da coreografia, na ordem de entrada dos sapateadores em
cena, na escolha da música, na opção de ensaiar mais e até mesmo
na opção de ensaiar menos. Ouso dizer que se escolho, falo, opto! E
isso constitui discurso, organiza cena e amplifica o que
implicitamente dizemos quando estamos no palco (seja ele de que
natureza for) ou na sala de aula. Namorando a filosofia paquero com
Aristóteles: “O ser se diz de várias maneiras”.
Assim sendo, respeitemos uns aos outros, respeitemos. Acolhamos uns
aos outros, acolhamos!
Respeitemos
uns aos outros para além dos currículos brilhantes, cheios de
números, prêmios, viagens, nomes difíceis. Não quero com isso
dizer que devamos abrir mão de celebrar nossas histórias de vidas,
trajetórias artísticas muitas vezes caras e dolorosas, cheias de
sacrifícios, barreiras, pedras no caminho e uma imensidão de “nãos”
a nós distribuídos de forma gratuita e leviana ao longo do
caminhar.
Falo,
eis o ponto primordial, de nossa disposição genuína para perceber
e acolher o que está ao nosso lado e muitas vezes não conseguimos
enxergar, não conseguimos dar a mão, uma palavra, um copo dágua
que mate a sede do conhecimento e possibilite parcerias. Na mesma
proporção do ensinar, está a proporção do aprender, já nos
disse Paulo Freire. Descobrir esse estado de prontidão ao outro é
libertador e promove crescimento humano. Informo de forma repetida,
porque a repetição é uma forma de realizar “alcances”: Estar
pronto ao outro promove crescimento humano.
Penso com o auxílio de Gilberto Gil, metáfora repleta de realidade.
Suspeito que, estar à disposição do outro é o ponto de partida
para uma relação minimamente bonita, empática e, por que não?
inesquecível. Gil nos pede: “Traga me um copo dágua tenho
sede, e essa sede pode me matar, minha garganta pede um pouco de água
e os meus olhos pedem teu olhar” Pergunto: “O que
acontece perto de nós a título de sapateado?” “Como olhar menos
para mim e o que eu faço e direcionar o meu olhar para outras
perspectivas de colaboração, atenção e acolhimento?” “Como
oferecer um copo dágua?” Se essa reflexão não fizer
sentido, acredito que sinceramente será preciso repensar o nosso
lugar no mundo não é mesmo? suspeito mais uma vez que, em se
tratando de arte, seja ela qual for, nunca, mas nunca mesmo deve ser
apenas sobre mim. Se assim o for, há algo de errado. Daí a
necessidade, de se repensar processos formativos, relações de
ensino-aprendizagem, festivais competitivos e uma celeuma de pontos
que não cabem ser discutidos aqui. (Pausa pra o café)
2.
O sapateado em período de isolamento – algumas questões.
Em
tempos de isolamento, parece-me que o zoom para as fragilidades
humanas se amplifica…. Literalmente tudo fica maior: medos,
inseguranças, saudades, carências, ansiedades, a quantidade de
remédios… tudo se amplifica. E com isso a capacidade de se
reinventar também se dá de forma amplificada.
Observando
daqui (quarto, janela, computador, redes sociais) tenho percebido o
louvável esforço de sapateadores pelo Brasil e pelo mundo de se
reinventarem através de aulas, cursos, seminários, lançamentos de
livros, ensaios, bate-papos sobre sapateado e tudo me parece tão
próximo e (por uma questão bem particular) tão distante. Lanço
aqui algumas perguntas.
Pergunto
porque a intenção é dividir as inquietações, pensar junto:
“Conseguiríamos viver sapateando se essa forma que estamos
sapateando hoje, através de lives, fosse a única maneira de se
manter sapateando?” “O que se perde nessa metodologia de ensino?”
“Tem ensino de sapateado nessa metodologia?” “É possível
ensinar os primeiros passos através de uma live?” “O que se
ganha?”.
Trago
aqui a Mestra Cintia Martin para nos lembrar que:
“Para
se ensinar, é preciso ter consciência de uma série de itens, como:
conhecimento profundo da técnica, a história e a origem do
sapateado, terminologia correta, noções básicas de anatomia e
noções básicas de música. Além disso, muita paciência,
disponibilidade, disposição, criatividade e humildade”. (Trecho
retirado da apostila TOQUES: VIVENDO, APRENDENDO E ENSINANDO O
SAPATEADO). Curiosamente, o título de sua publicação traz memória
Heideggeriana.
Quais
implicações, a sugestão de Cintia Martin trazem para o atual
cenário de ensino do sapateado no Brasil? Seja ele on-line, seja ele
presencial? Estamos prontos? É possível? Há outras considerações
registradas para as competências de ensino no âmbito do sapateado?
Cá
estou refletindo sobre essas questões simplesmente porque: 1.
preocupação com um método que me parece humanizado e eficiente que
é o corpo a corpo; 2. Caretice minha, assumo e assumo que
minha forma de olhar para isso pode ser um problema sim.
Estou
na vida, como em Heidegger e como em Martin: vivendo, tentando e
aprendendo. Gostaria muito de discutir sobre isso porque me parece
bem claro que já existe um mercado aberto para essa metodologia de
ensino. Não é uma crítica, busco entender. Quanto mais formas de
se fazer chegar o sapateado as pessoas, melhor, para todos nós. No
entanto: “Que tipo de sapateado chegaria às pessoas no
formato online?”
De todo, acho importante
atentarmos para o fato de que existem metodologias diversas, cabeças
diversas, pessoas diversas. Seus fazeres dizem muito de si, como já
colocado a cima, importa, entretanto, que pensemos em formas de
agregar, presencialmente ou virtualmente. Mas insisto, curiosidade
mesmo: “É possível? Através do online?”
Acredito na presença física
como potencializadora de aprendizagens, porque aprender tem a ver com
o olhar, com o fazer junto, com ouvir a respiração, com o manuseio
do corpo em algumas situações, com o suor respingado, com o chão
dividido, com a troca de sons, com o papo descontraído que acontece
ao amarrar de cadarços com o colega ao lado, com a combinação da
cerveja logo após e ainda: com a relação intrínseca entre coragem
e medo, vergonha e ousadia. Quem nunca tremeu de nervoso em uma sala
de aula de sapateado com certa insegurança em executar sequências
de aula? Faço um contraponto: no modo virtual, essa insegurança
diminui?
Que fique entendido desse
escrito que, a intenção não é desqualificar, negar, anular o que
o momento de isolamento social nos oferece – eu não teria estudo
ou conhecimento suficiente para isso, estou buscando saber – Mas
antes de tudo criar conexões entre o que fazemos com o que fazemos e
da forma que fazemos. Importa olhar para isso buscando formas de
fortalecer outras metodologias e modos de ensinar e aprender,
acredito que enquanto professores (em algum momento todos o somos)
seja importante estar atento.
No meio da problemática aqui
discutida, existe a velha questão da desigualdade do país que
exclui alguns alunos por falta de acessos, computadores, celulares,
internet… temas e questões para um outro momento. Mas que não
fechemos os olhos e os ouvidos para as desigualdades. Elas, mais do
que qualquer outra situação, também necessitam de olhar, cuidados,
empatia… acolhimento.
3. Celebremos um ano
inteiro: É possível, é necessário
Celebremos o 25 de maio. Há
muito o que celebrar. O Brasil, grande e diverso traz na sua história
do sapateado as marcas de vivências que ultrapassam a lógica do tap
dancing americano. O nosso país traz em sua cultura de povos um
acervo grande e vasto de sapateios que, se diferenciam do tap dancing
americano devido o uso de chapas de metal nas solas dos sapatos por
lá usadas.
Bastante polêmica a suposição
de que o Brasil é um país que sempre sapateou. Mas observemos: O
frevo, o xaxado, o samba, o maracatu, as bandas cabaçais do interior
do sertão do Cariri, as danças de reisado, a chula, a catira são
danças que por si só têm sapateio, têm sapateado.
Sem desejar reabrir o ciclo
das polêmicas sobre a questão, continuo suspeitando que, o que
difere nossos sapateios do tap dancing americano é a ampliação do
som através das chapinhas de metal. Valéria Pinheiro (Ce), em
décadas de pesquisa em sapateado no Brasil, já desmistificou de
forma brilhante essa questão, rompendo barreiras e fazendo a América
perceber que o sapateado também se legitima de forma potente no
Brasil sem ter como parceira fiel apenas o jazz, o lind hop, o blues.
Lindo trabalho. Obrigado Valéria Pinheiro.
Importa, importa muito dizer
que, no que diz respeito a um “sapateado brasileiro”, não se
trata de pegar determinada música: xaxado, samba, frevo, ou outra
qualquer e criar uma sequência lógica de passos dentro de uma
contagem binária que caiba dentro da partitura musical. Está
implicado aqui, o trabalho árduo de pesquisa de movimentos de pés,
dinâmicas, volumes e velocidades que dialoguem de forma coerente com
a música brasileira. Longo e exaustivo processo, muitas horas de
estúdio, muitas horas seguidas com o sapato de sapateado no pé.
Assim como Valéria, outros
nomes não menos importantes traçaram ao longo dos anos formas de
contribuição para o desenvolvimento do sapateado. Cintia Martin
talvez tenha sido a primeira brasileira a se preocupar em registrar
dados, metodologias de ensino e conhecimento musical para estudantes.
Além disso transcreveu exaustivamente a nomenclatura do sapateado,
buscando facilitar o acesso quando ainda não sabíamos a diferença
entre um toe drop e um heel drop, suspeito que através de Cintia a
gente deixou de falar “ponta calcanhar” ou “pisa pisa”.
Obrigado Cintia Martin.
Eu não planejei trazer nomes
ou particularizar homenagens porque sempre corremos o risco de ser
injustos, mas não dá para falar do sapateado no Brasil sem falar
também do Mestre Steven Harper que com seu conceituado TAP in Rio
abre portas para sapateadores jovens aprenderem e descobrirem o
sentido do sapateado através de aulas com professores, em sua
maioria, brasileiros. Bia Mattar tem um papel ímpar na disseminação
do sapateado enquanto linguagem brasileira, pois em Floripa foi ela a
pessoa que apresentou outra possibilidade de sapateio, fugidia do
jazz e do blues. Obrigado Steven Harper. Obrigado Bia Mattar.
É um recorte. Esse escrito
não daria conta de agradecimento algum, são muitos feitos que esses
profissionais executaram e continuam executando no país para se
manter viva a paixão e o fogo, o desejo de realizar sapateado.
Precisaria agradecer também a Marchina, Maurício Silva, Stella
Antunes, Amália Machado, Christiane Matallo, Flávio Salles (in
memória), Kika Sampaio, Luiz Baldijão, Rachel Cavalcanti, Vera
Passos, Thiago Marcelino, Flávia Costa. Me perdoem a injustiça de
deixar alguém de fora, não é intencional.
Alegrias somadas, passos
divididos em aulas, mostras, cursos… há em mim um imensurável
desejo de que essas trajetórias se perpetuem. Que o sapateado
em nós não morra. Que resistamos frente aos incontáveis
nãos que recebemos ao longo da vida, ao longo da carreira. Para isso
invoco e convoco aqui as gerações pós-mestres, sapateadores que
delineiam um outro tempo de sapateado, traçando pontes, conectando
histórias, geografias e pensamentos. Descobrindo fazeres.
Saúdo aos que estiveram em
algum momento comigo como alunos ou colegas de trabalho. Hoje celebro
também você Giuliano Antônio, Fernando Flesch, Leonardo Dias,
Renata Defina, Marina Coura, Dudu Martinez, Melissa Tannus, Cinthia
Pequeno, Gisella Martins, Bianca Moreno, Rafaelle Oliveira, Juliana
Castro, Juliana Garcia.
Toda a minha reverência à
Cia dos Pés Grandes pelas parcerias, pela trajetória, pelo
atrevimento e teimosia. Celebro o amoroso sapateado que partilhamos
em via de mão dupla, o encontro potente e o desejo infindo de fincar
o pé nesse chão duro que acaba amolecendo de tantos afetos. Com
vocês o sapateado se faz poesia e acalanto como em um poema de
Manuel de Barros quando diz que: com vocês “eu queria crescer pra
passarinho”. Obrigado, muito obrigado Rodrigo Silva, Edson Sousa,
Henrique Casimiro, Dudu Abreu, Fabinho Vieira, Pedro Júlio Roque,
Lucas Teófilo, Rubéns Lopes, Jota Nogueira, Pedro Moreira, Adonai
Elias, Anael Guimarães, Mauricio Batuta, Carol Benjamin, Angélica
Nunes.
O dia 25 de maio é o dia de
aniversário de Bill Bojangles, por seu feito o celebramos e o
rendemos reverências inquestionáveis. Por vossas obras, por vossas
histórias, por vossos fazeres eu também celebro o dia do
sapateado em 08\06; 06\11; 14\1; 11\03; 10\12; 16\07, 26\08; 21\12;
09\11; 06\12; 06\06; 15\02;
30\11; 11\07; 29\10; 24\06; 05\05; 30\08; 21\05; 17\11; 03\05; 13\05;
28\09; 04\08; 19\09; 14\04; 24\11; 12\02; 29\03; 24\01; 31\10; 19\12;
03\03; 14\12; 13\09; 15\05. Dias de nascimento, renascimento,
invenção e reinvenção do sapateado brasileiro.
Nesse dia 25 e por todos os
outros dias de celebração do sapateado me dispo de pudores, medos,
egos e orgulhos, erros e acertos e me rendo com toda gratidão e amor
a vocês que escrevem essa história de forma idônea, diversa,
bonita e ímpar. Desejo vida-longa a esse caminhar, desejo
perseverança. Que sentemos nas pedras encontradas no meio do caminho
para melhor pensar como removê-las. Desconfio que a felicidade plena
não existe, mas acredito que alegria e coragem nos elevam a
patamares de sensações deliciosas, extremas. Sigo com vocês,
sapateando para mexer o mundo. É uma alegria fazer parte
disso. Cada tempo a seu tempo, porque como nos ensina Clarice: “…em
matéria de viver, não se pode chegar antes…”
Evoé, Axé, Obrigado.
Heber Stalin