segunda-feira, 25 de março de 2013
POR ONDE SE VÊ A DANÇA CONTEMPORÂNEA. Maravilha de texto.
O que é a dança contemporânea ou dança pós-moderna? Esta
continua sendo a pergunta de muitos bailarinos, coreógrafos,
professores, pesquisadores, espectadores e alunos de dança, em todos os
encontros, cujo foco de discussão seja esta linguagem cênica. E, de certo,
tal questão persistirá por um longo tempo, sem resposta absoluta,
simplesmente, por se tratar de um modo diferente de pensar e criar a
dança em outros ambientes, com diferentes linguagens artísticas e com
distintos materiais. A partir de um trânsito livre de idéias, investigação e
experimentação, a dança contemporânea encontra a sua própria lógica
na fusão de diversos signos que, pelo corpo que dança, se convertem em
signos esteticamente coreografados.
A inter-relação entre dança e teatro; dança e performance; dança e
literatura; dança e artes plásticas; música e tecnologia, há muito,
estabeleceu diálogos no campo da criação, e isto, não é exclusivo da
dança contemporânea, porém, a dança em meados dos anos 40, revela ao
mundo outras maneiras de pensar-fazer tais relações na cena
coreográfica contemporânea. Mas, como definir um movimento artístico
de maneira única, em uma sociedade que se distanciou de uma vida
disciplinar absoluta, que deixou para trás a filosofia clássica de uma
sociedade “como sistema delimitado e sua substituição por uma
perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada
ao longo do tempo e do espaço” (Giddens apud HALL, 2005, p.67).
A sociedade contemporânea está “condenada” a viver com as
diferentes redes de informações, numa velocidade que dá pouco tempo ao
corpo para se organizar, com os avanços e surgimentos de produtos com
tecnologias mais avançadas, quer seja para o conhecimento usual no
cotidiano ou para o uso na cena. A dança contemporânea nasce com os
preceitos da contemporaneidade e carrega, em si, as constantes
modificações dos processos do mundo globalizado, o que implica dizer
que este gênero de criação vive as questões referentes ao seu tempo, mas,
seria muito ingênuo pensar esta prática em função do tempo
contemporâneo, apenas.
A questão da reflexão sobre a dança contemporânea não está
restrita ao tempo, no sentido dos acontecimentos nele ocorridos, mas, na
proposição dos signos estéticos configurados à imanência de sua
poética, capazes de criar e transformar a realidade dos materiais
derivados de outros fazeres, em um saber-fazer-dizer, de modos REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
diferentes. Do seu jeito particular de sentir, de ver, de recriar e resignificar, ao sabor do devir (DELEUZE, 2006), num jogo de deixar vir a
ser a essência de sua própria criação e do seu olhar do mundo.
Uma criação que transporta uma estética que articula vários
elementos provenientes de outras áreas do conhecimento e encontra um
modo particular e, ao mesmo tempo universal, que não se escraviza a
uma técnica de criação e, muito menos, de preparação corporal. A toda
nova criação, o artista encontra o seu rumo de investigação, o campo de
experimentações e vivências é, inegavelmente, conquistado por cada
criador que elabora o seu método de pesquisar e de estar em cena.
A professora e pesquisadora Denise Siqueira prefere pensar,
conceitualmente, dança contemporânea como um “guarda-chuva que
abarca construções coreográficas muito diversas de variados lugares e
culturas ao redor do mundo” (SIQUEIRA, 2006, p. 107). Neste terreno
movediço, por onde caminha este gênero de dança, não dá para tecer
nenhum diálogo uníssono, sobretudo, pela ousadia e coragem criativa
(MAY, 1975) de colocar o corpo na cena. Corpo este, também, formado
por vários acontecimentos grudados na memória de cada célula corporal,
que transporta tanto no cotidiano, quanto para a cena coreográfica,
diferentes modos e estados de ver, sentir e de estar em comunicação no e
com o mundo.
Trata-se de uma dança que não exclui absolutamente nada, nem
ninguém, ao contrário, é capaz de abraçar diferentes linguagens e objetos
da cena na mesma montagem. Uma de suas características concentra-se
na possibilidade de articulação com várias áreas do saber, em dinâmicas
e processos de criações marcadas pela pluralidade de idéias e estéticas,
em constante recriação, reconfiguração e de reconhecimento de uma
linguagem transdisciplinar que, pelo diferencial do fazer-dizer diverso,
convida artistas, críticos e público em geral ao diálogo do múltiplo.
A maneira como se pensa a cena de dança contemporânea tornase grande desafio, tanto para os artistas, quanto para o público que,
constantemente, é chamado a descobrir outra maneira de ver, sentir e de
dialogar com a obra coreográfica, tarefa essa, cada vez mais difícil e
estranha, para alguns olhos que ainda tentam conviver e se acostumar
com a velocidade das informações de um mundo, hoje, com fronteiras
tênues.
Mas de quais fronteiras, na dança, estamos falando? E há quanto
tempo dizemos e lemos em vários artigos que as fronteiras são tênues? A
impressão é que ainda temos receio de assumir que as porteiras já se
abriram e romperam completamente, ou será que não? Talvez, nos
sintamos mais tranqüilos em pensar que ainda há um fio não rompido,
esteticamente, do período que antecedeu o fazer-pensar na pósmodernidade. Daí, continuarmos a falar de ensino e pesquisa em dança
contemporânea, que ainda faz uso de técnicas sistematizadas há mais de REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
três séculos. Então, de que dança contemporânea falamos e fazemos? E
como afirmar que estamos diante de uma montagem de dança
contemporânea? E será que ainda precisamos de afirmação desta ordem?
Contudo, não estamos pensando que é preciso esquecer,
definitivamente, os acontecimentos do passado, afinal, eles foram
importantes para as transformações que vivenciamos agora, mas,
fazendo um convite para refletir sobre a criação em dança que continua
em ascensão nos fenômenos contemporâneos e, portanto, como fruto de
um mundo de ruptura, de fragmento e desterritorializado em constante
transmutação.
Na contramão de tantas questões paradigmáticas, este gênero de
dança felizmente existe e agrega, em seu fazer, valores e reconhecimentos
de uma arte em constante processo, aberta às inúmeras experimentações
e leituras que, inscritas no corpo, não podem ser entendidas fora dele e,
além disso, propõe um discurso que inaugura outra perspectiva de olhar
e fazer a dança.
A experimentação e a liberdade de criação encontram, na dança
contemporânea, o campo fértil para o sentido do novo, naquilo em que o
corpo-sujeito que dança, ainda não vivenciou, algo diferente, que propõe
distanciamento dos estereótipos coreográficos já existentes. A condição
de experimentar e vivenciar os acontecimentos no corpo contemporâneo é
inegavelmente maior.
Observamos que existiram momentos nos processos criativos que
pareciam querer iniciar certa sistematização de seqüências de
movimentos, quer sejam de aulas desta estética coreográfica, ou nas
criações propriamente. Nos anos 80, as coreografias contemporâneas
enfatizavam em suas composições os elementos da corrida, saltos,
rolamentos, acrobacias, quedas e, praticamente nada, além disso. Em
todos os festivais, lá estavam os mesmos elementos colocados em ordens
diferentes, sem nenhuma pesquisa que apontasse um elemento surpresa.
Na década seguinte, a reflexão acerca deste movimento nos fez
avançar em direção às novas pesquisas que imprimissem na cena a
diferença, reconhecendo, de modo contumaz, os métodos subjetivos de
cada criador, como o meio de reflexão, ousadia, estranhamento e
coragem de lidar com diferentes materiais na concretização de uma
dança mais autoral, que não se encontra em nenhuma fronteira tênue,
que não quer se fechar em códigos geradores de conceitos estereotipados,
que não divide a performance, o teatro, o canto, a literatura, as artes
plásticas, ou qualquer outro fenômeno de comunicação. Ao contrário,
junte as várias linguagens para criar uma terceira, cujo significado
encontra-se no interior das formas imbricadas de um corpo capaz de
dançar e cantar, simultaneamente, de falar um texto enquanto dança, de
pintar o chão com o corpo enquanto dança, de improvisar para criar a
dança no instante em que entra no palco. Então, onde está a fronteira? REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
Não há fronteiras para ver e fazer a dança, como não há regras
rígidas para criar, na cena contemporânea. Os coreógrafos e
pesquisadores contemporâneos têm a liberdade de trabalhar com corpos
desprovidos de preconceitos, livres de quaisquer paradigmas que possam
frear a liberdade de experimentar o inesperado.
É difícil afirmamos que a tendência estética na dança
contemporânea vai nesta ou naquela direção, acredito que a tendência
esteja estreitamente conectada à idéia de cada criador, portanto, são
muitas as direções neste campo de investigação. Aqui, impera a idéia
conceitual daquilo que queremos, como criadores, comunicar pela
estética de nossos resultados artísticos.
Por onde se vê a dança? Por onde se dança? Não se vê por um
único canal, não se dança da mesma maneira e nem no mesmo tempoespaço. O que está por trás de cada criação deve ser descoberto, como
nos lembra Mikail Bakhtin, no interior das formas e conteúdos que,
numa fração de segundos, na dança, passam à frente de nossos olhos,
em movimentos e fluxos coreográficos que, temporariamente, na cena,
imprimem a semântica que lhe é peculiar (BAKHTIN, 2000).
A dança de que falamos nos lembra o mestre Mercer Cunningham,
pode ser concebida e encenada em qualquer lugar, para qualquer corpo,
com ou sem música, com ou sem narrativa e o acaso é mais uma
característica do que pode a dança e o corpo na cena contemporânea.
Trata-se de uma gramática coreográfica que não se restringe a um único
código de movimento, portanto, um fazer múltiplo: de múltiplos olhares,
de múltiplas escolhas, de múltiplos diálogos e dramaturgias.
O pensamento e o fazer que redimensionam a dança
contemporânea, em todo o seu sistema simbólico, encontram na
alteridade a principal chave para o olhar diverso de cada obra escrita no
corpo. A perspectiva de criação é certamente a mais distinta, uma vez
que se distancia da idéia de sistematização de um único fazer, e não se
deixa aprisionar por uma determinada regra. As técnicas, os materiais e
os artifícios usados pelos artistas não estão vazios, ao contrário, em suas
formas estão contidos inúmeros significados que, somados às idéias do
criador em dança, revelam outras possibilidades de comunicação numa
perspectiva inovadora.
Neste universo ousado de recriar e inovar, novos instrumentos
deste mundo industrial capitalista entram em cena, nos processos
criativos coreográficos. O mundo das sofisticadas máquinas de alta
tecnologia ganha mais espaços na dança. Assim, o computador é, hoje,
não apenas mais uma ferramenta para gravar e reproduzir CD, DVD, ou
para simplesmente digitar um texto. Na dança, é mais um relevante
instrumento, que modifica o fazer e o olhar de criadores, que
experimentam os recursos tecnológicos e reinventam outros modos
diferentes de usar os aparatos da tecnologia, na fusão com a dança. REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
A linguagem do audiovisual, entrelaçada com a linguagem da
dança, fez insurgir no mundo da dança contemporânea o que hoje
conhecemos como linguagem da vídeodança. Uma prática artística que
nada tem a ver com o registro simples e fiel de uma obra coreográfica, ao
contrário, tem uma relação entre corpo, câmera, tempo-espaço, numa
proposição de fusão entre linguagens em ambientes diversos. Para o
professor Alexandre Veras “uma invenção de um espaço de pesquisa que
explora diversas relações possíveis entre a coreografia, como um
pensamento dos corpos no espaço e o audiovisual, como um dispositivo
de modulação das variações espaços-temporais” (VERAS, 2007, p.15).
O cenário da dança contemporânea expande-se no campo do não
limite e é tanto da natureza cibernética, quanto da natureza corporal. A
questão está na escolha dos materiais e na maneira operacional dos
mesmos, em signos estéticos, de modo que a recepção, o processamento
e a comunicação sempre se darão entre os corpos.
À guisa da reflexão particular acerca do contexto da dança
contemporânea, vale comungar com a pesquisadora e professora Helena
Katz, que vê a dança como “o pensamento do corpo, e esse corpo, como a
mídia básica, exemplar dos processos de comunicação da natureza”
(KATZ, 2003, p.262), é pela natureza do corpo que as informações se
cruzam e, deste mesmo lugar, emerge a recepção, a comunicação e a
transformação na dança.
Um exercício permanente de organizar os signos e seus sistemas
conceituais para, em seguida, convertê-los em movimentos metafóricos
do corpo que é dança e assim, aprofundar o olhar de quem dança e
dialoga à luz de uma poética contemporânea, eminentemente,
transdisciplinar e herdeira de vários filamentos ramificados, ao longo da
evolução do fazer-pensar-dançar. Aqui reside a idéia do “guarda-chuva”
como o local que abriga todas as poéticas coreográficas contemporâneas,
entre elas, a dança-teatro, a vídeo-dança e todas as outras possibilidades
de fusão estética coreográfica que o artista continua a investigar.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2006.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005.
KATZ, Helena. A dança, pensamento do corpo. In. NOVAES, Adauto.
(Org.). O homem máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo
Texto de
Waldete BRITO
Doutoranda em Artes Cênicas (UFBA). Mestre em Artes Cênicas-UFBA.
Intérprete Criadora, Diretora Artística e
Professora da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA).
Texto importantíssimo na minha vida!
– Tu faz dança? Que legal! Mas que tipo de dança?
– Dança contemporânea.
O sujeito fica parado e depois de vencer o constrangimento:
– Mas o que é essa tal de dança contemporânea?
Daí o vivente, que faz dança contemporânea e sabe bem o que faz, se vê em apuros para dar uma resposta clara. Afinal, dança contemporânea não é uma técnica ou método que vem com rótulo. Então, ele arrisca:
– Sabe o Quasar Cia. de Dança? – que o vivente acha referência no país e crê ser bastante conhecida.
O sujeito permanece na mesma.
– E o Grupo Corpo? – ele lembra, já entrando em desespero. – E Deborah Colker? – ainda que não fosse o melhor exemplo que você quisesse dar.
– Ah, já vi na televisão, responde o sujeito finalmente com um brilho no olhar de quem agora pode encerrar a conversa.
E o vivente, com a certeza de que não conseguiu explicar e que melhor que explicar era sugerir que assistisse a um espetáculo.
A realidade é esta que o suposto diálogo acima ilustra. A idéia de dança contemporânea não consolidou uma referência para a maioria do público (e mesmo para a comunidade de dança), ainda mais num Estado que vê com desconfiança aquilo que não é tradição. E isso vale muitas vezes para quem produz, ou acha que produz, dança contemporânea. Basta ver a confusão em tantos festivais competitivos. O território da dança contemporânea é um vale-tudo. Passos de jazz com música experimental. Neoclássico ao som do diálogo dos bailarinos. Dança de rua com um toque de vanguarda. E a obra, nesta lógica estapafúrdia, é avaliada por especialistas de toda ordem, menos de dança contemporânea.
Esta realidade tem como origem a rara circulação de informações e o consumo de informações descontextualizadas e superficialmente elaboradas. A qualidade dessas informações é essencial e precisa ser difundida a quem pretende preparar um treinamento, criar, julgar e apreciar a dança contemporânea. Não dá para saborear morangos e reclamar de que não têm gosto de figos. Ninguém curte uma partida de futebol sem conhecer as regras do jogo. Nesse sentido, é preciso apresentar alguns fatos, ainda que de forma sintética, para que eles possam falar desta tal de dança contemporânea.
Fato 1. A dança contemporânea não é uma escola, tipo de aula ou dança específica, mas sim um jeito de pensar a dança. Forjada por múltiplos artistas no mundo, teve nas propostas da Judson Church, em Nova York, na década de 60, sua mais clara formulação de princípios. Dentre eles, o de que cada projeto coreográfico terá de forjar seu suporte técnico. E que ter um projeto é percorrer escolhas coerentes, como o fez Trisha Brown – e também, longe dali, na Alemanha, Pina Bausch, com sua dança-teatro, nos anos 70. Tal princípio implicou tanto a preservação de aulas de balé nutridas por outras técnicas e linguagens quanto o abandono do balé e a incorporação, por exemplo, de técnicas orientais. Assim, passou a se constituir uma infinidade de alternativas, como o teatro-físico do DV-8 (companhia inglesa composta só por homens, que aborda a homofobia e que recorreu ao uso de corpos que expressam força, agressividade e sexualidade, coisa que o balé não podia fornecer).
Fato 2. Não há modelo/padrão de corpo ou movimento. Portanto, a dança não precisa assombrar por peripécias virtuosas e nem partir da premissa de que há “corpos eleitos”. Na dança contemporânea, a máxima repetida por pedagogos ortodoxos de que “não é tu que escolhes a dança, mas a dança que te escolhe” não tem sustentação. E, dessa forma, pode-se reconhecer a diversidade e estabelecer o diálogo com múltiplos estilos, linguagens e técnicas de treinamento.
Fato 3. Dança é dança. A dança contemporânea reafirma a especificidade da arte da dança. Dança não é teatro, nem cinema, literatura ou música. Apesar de poder ganhar muito com a cooperação dessas artes. A dança não precisa de mensagem, de história e mesmo de trilha sonora. O corpo em movimento estabelece sua própria dramaturgia, sua musicalidade, suas histórias, num outro tipo de vocabulário e sintaxe.
Fato 4. The Mind is a Muscle, proclamou Yvone Rainer quando a dança pós-moderna norte-americana abalava o estabilishment. Pensamento e corpo, tão separados na tradição ocidental, não são entendidos como lugares estranhos um ao outro. Até mesmo a ciência já traz evidências de que razão e emoção não são opostos. O pensamento se faz no corpo e o corpo que dança se faz pensamento. Isso não implica uma cerebralização fria, no caminho de uma dança conceitual, nem na biologização vazia da dança. Tal princípio não exime a qualidade técnica, nem o sabor e o prazer de dançar. Ele ressalta a complexidade que precisa ser compreendida.
Tais fatos precisam começar a ecoar, se o objetivo é saber o que é esta tal de dança contemporânea, que as pessoas insistem em dizer que fazem e que insiste em permanecer em cartaz em teatros, calçadas, estúdios. (Não foi à toa que Fato. se chamava o recente e provocante espetáculo da coreógrafa gaúcha Tatiana da Rosa.) Fatos que estão se estabelecendo em obras sensíveis e inteligentes, construídas dentro destes princípios na temporada 2005, em Porto Alegre, como In-compatível, de Eduardo Severino, ou Bu, da Meme – Centro Experimental do Movimento. A mesma qualidade está no trabalho de Nei Moraes, em Caxias do Sul, e Luciana Paludo, em Cruz Alta.
A partir desses fatos, pode-se muito (mas não se pode qualquer coisa). A liberdade trazida pela perspectiva da dança contemporânea não dispensa idéias fortes e a inventividade das grandes obras de qualquer forma artística, nem um domínio técnico (ainda que isso não caiba mais apenas nas esfera do aprendizado de passos corretos). A dança contemporânea evidencia que escolhas estéticas revelam posturas éticas. Numa época de tantas barbáries impostas ao corpo, é preciso recuperar esta ética quando se escolhe fazer arte com o corpo – seja o seu, seja (principalmente) o dos outros.
A dança contemporânea parece ter aceitado a provocação, com ecos de contemporaneidade, de Jean George Noverre. O mestre de dança, em 1760, ao falar sobre o balé e as rígidas regras da dança da época, afirmava: “Será preciso transgredi-las e delas se afastar constantemente, opondo-se sempre que deixarem de seguir exatamente os movimentos da alma, que não se limitam necessariamente a um número determinado de gestos”. Num mundo de tantas conquistas e descobertas sobre nós, seres humanos, seria no mínimo redutor ficar tratando a dança como apenas uma repetição mecânica de passos bem executados. Fazer tais passos, na música, ursos, cavalos e poodles também fazem. Creio que o ser humano pode ir mais longe que isso. Talvez este seja o incômodo proposto por esta tal de dança contemporânea. O de que podemos ser mais e muitos. Airton Tomazzoni.
Além do Ponto.
Maravilhoso texto de Caio Fernando Abreu, do livro Morangos Mofados, uma das primeiras leituras intensas que tive na vida... aos 14 anos de idade!
ALÉM DO PONTO
Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse o táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos, beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d’água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto. Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta. Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca. In Morangos Mofados
Impressões de uma descoberta de corpo e dança.
"alongamento, luta, coreografia, repetição, suor, sorrisos, dança, dança, dança, sapateado, cansaço, pausa, água, água, água, café, correção, conseguir, tentativa, música, reencontro, hoje eu é que digo: QUE DOMINGO LINDO! Rodrigo Silva, sua alegria de estar ali contagia a todos! Como é bom senti-la! Rubéns Lopes, você é essencial, Wallan Abreu, sua empolgação é linda, Dudhu Abreu, adoro sua presença tão nova e já tão marcante entre a gente, Samuel Lopes, a tua observação não é a toa, tenho certeza, Dario Dariurtz, ficou faltando você ali com a gente que sapateia menos hoje rsrsrs, Saymon Morais, seus braços balançaram menos hoje hein rsrsrs Heber Stalin, foi lindo te ver feliz por ver aquele palco cheio de gente nova e antiga, além da energia que te alimenta e você sempre faz questão de dizer! LINDOSSSSSSSSSS!!!! Bom finzinho de domingo a todos!"
Lucas Teófilo
Ator, Bailarino da Cia. dos Pés Grandes.
Santo Agostinho me faz dançar!
"Eu louvo a Dança, pois ela liberta as pessoas das coisas, unindo os dispersos em comunidade. Eu louvo a Dança que requer muito empenho, que fortalece a saúde, o espírito iluminado e transmite uma alma alada. Dança requer o homem libertado, ondulado no equilíbrio das coisas. Por isso eu louvo a Dança. A Dança exige o homem todo ancorado em seu centro para que não se torne, pelos desejos desregrados, possesso de pessoas e coisas, e arranca-o da demonia de viver trancado em si mesmo. Ó homem, aprende a Dançar! Caso contrário, os anjos não saberão o que fazer contigo." Santo Agostinho.
Cidadania? Pura LUTA!
É bastante paralisante o momento que antecede uma escrita sobre cidadania e seguridade social no Brasil, principalmente se levarmos em consideração o caos instaurado pela lógica do capital, a imperatividade do neoliberalismo e a fragilidade do conhecimento do que se é direito ou não por parte dos brasileiros. É importante dizer, que quando se fala sobre “Fragilidade do conhecimento” não é na tentativa de culpabilizar o povo brasileiro, pois é sabido que, essas mesmas fragilidades são inerentes à perversidade do sistema capitalista que retalha as possibilidades do conhecimento garantindo o saber apenas aos que por ele podem pagar, ou seja, à classe burguesa.
Diferente dos modos de operacionalização de seguridade social desenvolvida em países de primeiro mundo como Alemanha e Inglaterra, o Brasil fica à mercê única e exclusivamente da capacidade produtiva do trabalhador como mérito ao seguro. Ou seja, se o trabalhador está servindo ao mercado ele terá sua seguridade, ou parte dela, garantida; quanto aos que não trabalham – porque não conseguem competir no mercado de trabalho, ou porque não conseguiram acessar políticas públicas que lhes garantissem a concorrência a vagas no mercado de trabalho – ficam à mercê de benefícios operacionalizados no âmbito da política de assistência social ou ainda à tutela de programas assistencialistas e de caridade.
Sobre isso, Ivanete Boschetti ressalta que:
“Historicamente, o acesso ao trabalho sempre foi condição para garantir o acesso à seguridade social. Por isso, muitos trabalhadores desempregados não têm acesso a muitos direitos da seguridade social, sobretudo à previdência, visto que essa se move pela lógica do contrato, ou do seguro social. A seguridade social brasileira, instituída com a constituição brasileira de 1988, incorporou princípios desses dois modelos, ao restringir a previdência aos trabalhadores contribuintes, universalizar a saúde e limitar a assistência social a quem dela necessitar.” (BOSCHETTI. 2008)
A autora se refere aos modelos Bismarckiano e Beveridgiano como propulsores de uma lógica de seguridade social. O Primeiro desenvolvido na Alemanha ainda no século XIX tinha caráter privatizador, era garantido ao trabalhador alemão os direitos à seguridade conforme sua capacidade monetária de contribuir. O segundo modelo, desenvolvido na Inglaterra nos idos de 1940, após a segunda guerra mundial, dizia respeito a uma seguridade de caráter universalizante, segundo a autora “os direitos têm caráter universal, destinados a todos os cidadãos incondicionalmente ou submetidos a condições de recursos, mas garantindo mínimos sociais a todos em condições de necessidade” (BOSCHETTI, 2008).
No Brasil, se fizermos uma análise comparativa poderíamos talvez colocar que a seguridade social segue o modelo Bismarckiano com o discurso de um modelo Beveridgiano, posto que a política neoliberal do país nos empurra massivamente o slogan de um “país de todos” baseado talvez, na ideologia do modelo Beveridgiano que objetivava a luta contra a pobreza. Porém, quando se trata de privatização, está se falando também de aumento de pobreza, nessa perspectiva, é impossível se falar em equidade social e cidadania.
É justamente no âmbito da impossibilidade que os conceitos de cidadania e equidade social se misturam no cenário da seguridade social brasileira, ora, se na lógica do capitalismo, sistema desigual, que oprime, aliena e ludibria a classe trabalhadora (cidadãos?) em detrimento de uma exploração cada vez maior e mais assoladora, como falar em seguridade social e lógica social? Como falar em igualdade de direitos de acessos? Uma previdência que se instaura – como de direito – apenas àqueles que por elas podem pagar, pode ser reconhecida como uma política de seguridade social? Qual é a lógica social desse fato? Somente conhecendo por dentro as artimanhas do capitalismo e levando em consideração suas características de apartheid é possível se achar, ainda que revoltosamente, uma lógica.
O que temos que ter em mente é lucidamente o fato de que vivemos regidos por um sistema que se manifesta de forma cruel, não leva em conta os que sofrem com a precarização do trabalho – ou melhor – necessita da precarização do trabalho, pois dessa forma tem cada vez mais a seus pés trabalhadores pedindo para serem explorados, e assim não prega em condições nem mesmo mínimas as diretrizes (se é que estas existem) de cidadania. Em se tratando de Seguridade Social podemos dizer então que o capitalismo não possibilita a todos o acesso ao emprego, que por sua vez o emprego – principalmente os extremamente precarizados – não possibilita o acesso à previdência, e que por ser assim organizada essa estrutura, vai desembocar diretamente na assistência social, que dentro da organização da previdência é oferecida a quem dela necessita.
Dessa forma, o modelo de seguridade social brasileira, para além do que coloca Ivanete Boschetti em seu texto “Seguridade social no Brasil: Conquistas e limites à sua efetivação” está relegada ao assistencialismo e às ações de filantropia desenvolvidas por instituições de caridade, pois é sabido que existem famílias que vivem há mais de dez anos da oferta de cestas básicas de determinadas instituições, assim, o que deveria ser dever do Estado fica a mercê da população, o Estado tem intervenção mínima e o neoliberalismo confortavelmente ganha forças, como um caminho que não tem mais volta.
Um país marcado por ditaduras e coronelismos, que tem uma história de desenvolvimentismo em detrimento de uma história de desenvolvimento e de populismo em detrimento de popular, não poderia de forma rápida e acrítica se chegar a uma lógica de seguridade social que abrangesse a todos. As resoluções para esse problema talvez tenham realmente suas raízes fincadas no passado, no início da organização do país como nação “independente”. Pagamos alta a conta por uma independência que não permite autonomia aos que aqui trabalham e se nos governantes se instaura o peso da dívida externa, que é paga com os descontos dos salários dos trabalhadores, nos trabalhadores se instaura, cordialmente como disse Sérgio Buarque de Holanda, o peso do “muito obrigado” a quem a lhes ofereceu o pão para saciar a fome.
Nessa realidade o país vai se travestindo de emergente, negando os direitos dos trabalhadores e enriquecendo cada vez mais uma pequena parte da população, enquanto isso, o ciclo da pobreza aumenta e com ele uma série de questões que ao senso comum são apenas cotidianidade.
Por fim, a Seguridade no Brasil é frágil, quase inexistente para parte da população e totalmente inexistente para uma grande massa, pensar em cidadania nessa perspectiva é tentar disfarçar o que políticas paliativas tentam esconder por dentro de suas artimanhas de alcance e populismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSCHETTI, Ivanete – Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. – Direitos Sociais e competência profissional – 2008
HOLANDA, Sérgio Buarque – Raízes do Brasil. 26ª edição. Cia. Das Letras. São Paulo. 1995.
Recomeçar... trocar roupas, mudar peles...
O Haver
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai! eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo que existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será e virá a ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante.
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do grande medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.
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