segunda-feira, 25 de março de 2013
POR ONDE SE VÊ A DANÇA CONTEMPORÂNEA. Maravilha de texto.
O que é a dança contemporânea ou dança pós-moderna? Esta
continua sendo a pergunta de muitos bailarinos, coreógrafos,
professores, pesquisadores, espectadores e alunos de dança, em todos os
encontros, cujo foco de discussão seja esta linguagem cênica. E, de certo,
tal questão persistirá por um longo tempo, sem resposta absoluta,
simplesmente, por se tratar de um modo diferente de pensar e criar a
dança em outros ambientes, com diferentes linguagens artísticas e com
distintos materiais. A partir de um trânsito livre de idéias, investigação e
experimentação, a dança contemporânea encontra a sua própria lógica
na fusão de diversos signos que, pelo corpo que dança, se convertem em
signos esteticamente coreografados.
A inter-relação entre dança e teatro; dança e performance; dança e
literatura; dança e artes plásticas; música e tecnologia, há muito,
estabeleceu diálogos no campo da criação, e isto, não é exclusivo da
dança contemporânea, porém, a dança em meados dos anos 40, revela ao
mundo outras maneiras de pensar-fazer tais relações na cena
coreográfica contemporânea. Mas, como definir um movimento artístico
de maneira única, em uma sociedade que se distanciou de uma vida
disciplinar absoluta, que deixou para trás a filosofia clássica de uma
sociedade “como sistema delimitado e sua substituição por uma
perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada
ao longo do tempo e do espaço” (Giddens apud HALL, 2005, p.67).
A sociedade contemporânea está “condenada” a viver com as
diferentes redes de informações, numa velocidade que dá pouco tempo ao
corpo para se organizar, com os avanços e surgimentos de produtos com
tecnologias mais avançadas, quer seja para o conhecimento usual no
cotidiano ou para o uso na cena. A dança contemporânea nasce com os
preceitos da contemporaneidade e carrega, em si, as constantes
modificações dos processos do mundo globalizado, o que implica dizer
que este gênero de criação vive as questões referentes ao seu tempo, mas,
seria muito ingênuo pensar esta prática em função do tempo
contemporâneo, apenas.
A questão da reflexão sobre a dança contemporânea não está
restrita ao tempo, no sentido dos acontecimentos nele ocorridos, mas, na
proposição dos signos estéticos configurados à imanência de sua
poética, capazes de criar e transformar a realidade dos materiais
derivados de outros fazeres, em um saber-fazer-dizer, de modos REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
diferentes. Do seu jeito particular de sentir, de ver, de recriar e resignificar, ao sabor do devir (DELEUZE, 2006), num jogo de deixar vir a
ser a essência de sua própria criação e do seu olhar do mundo.
Uma criação que transporta uma estética que articula vários
elementos provenientes de outras áreas do conhecimento e encontra um
modo particular e, ao mesmo tempo universal, que não se escraviza a
uma técnica de criação e, muito menos, de preparação corporal. A toda
nova criação, o artista encontra o seu rumo de investigação, o campo de
experimentações e vivências é, inegavelmente, conquistado por cada
criador que elabora o seu método de pesquisar e de estar em cena.
A professora e pesquisadora Denise Siqueira prefere pensar,
conceitualmente, dança contemporânea como um “guarda-chuva que
abarca construções coreográficas muito diversas de variados lugares e
culturas ao redor do mundo” (SIQUEIRA, 2006, p. 107). Neste terreno
movediço, por onde caminha este gênero de dança, não dá para tecer
nenhum diálogo uníssono, sobretudo, pela ousadia e coragem criativa
(MAY, 1975) de colocar o corpo na cena. Corpo este, também, formado
por vários acontecimentos grudados na memória de cada célula corporal,
que transporta tanto no cotidiano, quanto para a cena coreográfica,
diferentes modos e estados de ver, sentir e de estar em comunicação no e
com o mundo.
Trata-se de uma dança que não exclui absolutamente nada, nem
ninguém, ao contrário, é capaz de abraçar diferentes linguagens e objetos
da cena na mesma montagem. Uma de suas características concentra-se
na possibilidade de articulação com várias áreas do saber, em dinâmicas
e processos de criações marcadas pela pluralidade de idéias e estéticas,
em constante recriação, reconfiguração e de reconhecimento de uma
linguagem transdisciplinar que, pelo diferencial do fazer-dizer diverso,
convida artistas, críticos e público em geral ao diálogo do múltiplo.
A maneira como se pensa a cena de dança contemporânea tornase grande desafio, tanto para os artistas, quanto para o público que,
constantemente, é chamado a descobrir outra maneira de ver, sentir e de
dialogar com a obra coreográfica, tarefa essa, cada vez mais difícil e
estranha, para alguns olhos que ainda tentam conviver e se acostumar
com a velocidade das informações de um mundo, hoje, com fronteiras
tênues.
Mas de quais fronteiras, na dança, estamos falando? E há quanto
tempo dizemos e lemos em vários artigos que as fronteiras são tênues? A
impressão é que ainda temos receio de assumir que as porteiras já se
abriram e romperam completamente, ou será que não? Talvez, nos
sintamos mais tranqüilos em pensar que ainda há um fio não rompido,
esteticamente, do período que antecedeu o fazer-pensar na pósmodernidade. Daí, continuarmos a falar de ensino e pesquisa em dança
contemporânea, que ainda faz uso de técnicas sistematizadas há mais de REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
três séculos. Então, de que dança contemporânea falamos e fazemos? E
como afirmar que estamos diante de uma montagem de dança
contemporânea? E será que ainda precisamos de afirmação desta ordem?
Contudo, não estamos pensando que é preciso esquecer,
definitivamente, os acontecimentos do passado, afinal, eles foram
importantes para as transformações que vivenciamos agora, mas,
fazendo um convite para refletir sobre a criação em dança que continua
em ascensão nos fenômenos contemporâneos e, portanto, como fruto de
um mundo de ruptura, de fragmento e desterritorializado em constante
transmutação.
Na contramão de tantas questões paradigmáticas, este gênero de
dança felizmente existe e agrega, em seu fazer, valores e reconhecimentos
de uma arte em constante processo, aberta às inúmeras experimentações
e leituras que, inscritas no corpo, não podem ser entendidas fora dele e,
além disso, propõe um discurso que inaugura outra perspectiva de olhar
e fazer a dança.
A experimentação e a liberdade de criação encontram, na dança
contemporânea, o campo fértil para o sentido do novo, naquilo em que o
corpo-sujeito que dança, ainda não vivenciou, algo diferente, que propõe
distanciamento dos estereótipos coreográficos já existentes. A condição
de experimentar e vivenciar os acontecimentos no corpo contemporâneo é
inegavelmente maior.
Observamos que existiram momentos nos processos criativos que
pareciam querer iniciar certa sistematização de seqüências de
movimentos, quer sejam de aulas desta estética coreográfica, ou nas
criações propriamente. Nos anos 80, as coreografias contemporâneas
enfatizavam em suas composições os elementos da corrida, saltos,
rolamentos, acrobacias, quedas e, praticamente nada, além disso. Em
todos os festivais, lá estavam os mesmos elementos colocados em ordens
diferentes, sem nenhuma pesquisa que apontasse um elemento surpresa.
Na década seguinte, a reflexão acerca deste movimento nos fez
avançar em direção às novas pesquisas que imprimissem na cena a
diferença, reconhecendo, de modo contumaz, os métodos subjetivos de
cada criador, como o meio de reflexão, ousadia, estranhamento e
coragem de lidar com diferentes materiais na concretização de uma
dança mais autoral, que não se encontra em nenhuma fronteira tênue,
que não quer se fechar em códigos geradores de conceitos estereotipados,
que não divide a performance, o teatro, o canto, a literatura, as artes
plásticas, ou qualquer outro fenômeno de comunicação. Ao contrário,
junte as várias linguagens para criar uma terceira, cujo significado
encontra-se no interior das formas imbricadas de um corpo capaz de
dançar e cantar, simultaneamente, de falar um texto enquanto dança, de
pintar o chão com o corpo enquanto dança, de improvisar para criar a
dança no instante em que entra no palco. Então, onde está a fronteira? REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
Não há fronteiras para ver e fazer a dança, como não há regras
rígidas para criar, na cena contemporânea. Os coreógrafos e
pesquisadores contemporâneos têm a liberdade de trabalhar com corpos
desprovidos de preconceitos, livres de quaisquer paradigmas que possam
frear a liberdade de experimentar o inesperado.
É difícil afirmamos que a tendência estética na dança
contemporânea vai nesta ou naquela direção, acredito que a tendência
esteja estreitamente conectada à idéia de cada criador, portanto, são
muitas as direções neste campo de investigação. Aqui, impera a idéia
conceitual daquilo que queremos, como criadores, comunicar pela
estética de nossos resultados artísticos.
Por onde se vê a dança? Por onde se dança? Não se vê por um
único canal, não se dança da mesma maneira e nem no mesmo tempoespaço. O que está por trás de cada criação deve ser descoberto, como
nos lembra Mikail Bakhtin, no interior das formas e conteúdos que,
numa fração de segundos, na dança, passam à frente de nossos olhos,
em movimentos e fluxos coreográficos que, temporariamente, na cena,
imprimem a semântica que lhe é peculiar (BAKHTIN, 2000).
A dança de que falamos nos lembra o mestre Mercer Cunningham,
pode ser concebida e encenada em qualquer lugar, para qualquer corpo,
com ou sem música, com ou sem narrativa e o acaso é mais uma
característica do que pode a dança e o corpo na cena contemporânea.
Trata-se de uma gramática coreográfica que não se restringe a um único
código de movimento, portanto, um fazer múltiplo: de múltiplos olhares,
de múltiplas escolhas, de múltiplos diálogos e dramaturgias.
O pensamento e o fazer que redimensionam a dança
contemporânea, em todo o seu sistema simbólico, encontram na
alteridade a principal chave para o olhar diverso de cada obra escrita no
corpo. A perspectiva de criação é certamente a mais distinta, uma vez
que se distancia da idéia de sistematização de um único fazer, e não se
deixa aprisionar por uma determinada regra. As técnicas, os materiais e
os artifícios usados pelos artistas não estão vazios, ao contrário, em suas
formas estão contidos inúmeros significados que, somados às idéias do
criador em dança, revelam outras possibilidades de comunicação numa
perspectiva inovadora.
Neste universo ousado de recriar e inovar, novos instrumentos
deste mundo industrial capitalista entram em cena, nos processos
criativos coreográficos. O mundo das sofisticadas máquinas de alta
tecnologia ganha mais espaços na dança. Assim, o computador é, hoje,
não apenas mais uma ferramenta para gravar e reproduzir CD, DVD, ou
para simplesmente digitar um texto. Na dança, é mais um relevante
instrumento, que modifica o fazer e o olhar de criadores, que
experimentam os recursos tecnológicos e reinventam outros modos
diferentes de usar os aparatos da tecnologia, na fusão com a dança. REVISTA ENSAIO GERAL, Belém, v.1, n.1, jan-jun|2009
A linguagem do audiovisual, entrelaçada com a linguagem da
dança, fez insurgir no mundo da dança contemporânea o que hoje
conhecemos como linguagem da vídeodança. Uma prática artística que
nada tem a ver com o registro simples e fiel de uma obra coreográfica, ao
contrário, tem uma relação entre corpo, câmera, tempo-espaço, numa
proposição de fusão entre linguagens em ambientes diversos. Para o
professor Alexandre Veras “uma invenção de um espaço de pesquisa que
explora diversas relações possíveis entre a coreografia, como um
pensamento dos corpos no espaço e o audiovisual, como um dispositivo
de modulação das variações espaços-temporais” (VERAS, 2007, p.15).
O cenário da dança contemporânea expande-se no campo do não
limite e é tanto da natureza cibernética, quanto da natureza corporal. A
questão está na escolha dos materiais e na maneira operacional dos
mesmos, em signos estéticos, de modo que a recepção, o processamento
e a comunicação sempre se darão entre os corpos.
À guisa da reflexão particular acerca do contexto da dança
contemporânea, vale comungar com a pesquisadora e professora Helena
Katz, que vê a dança como “o pensamento do corpo, e esse corpo, como a
mídia básica, exemplar dos processos de comunicação da natureza”
(KATZ, 2003, p.262), é pela natureza do corpo que as informações se
cruzam e, deste mesmo lugar, emerge a recepção, a comunicação e a
transformação na dança.
Um exercício permanente de organizar os signos e seus sistemas
conceituais para, em seguida, convertê-los em movimentos metafóricos
do corpo que é dança e assim, aprofundar o olhar de quem dança e
dialoga à luz de uma poética contemporânea, eminentemente,
transdisciplinar e herdeira de vários filamentos ramificados, ao longo da
evolução do fazer-pensar-dançar. Aqui reside a idéia do “guarda-chuva”
como o local que abriga todas as poéticas coreográficas contemporâneas,
entre elas, a dança-teatro, a vídeo-dança e todas as outras possibilidades
de fusão estética coreográfica que o artista continua a investigar.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2006.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005.
KATZ, Helena. A dança, pensamento do corpo. In. NOVAES, Adauto.
(Org.). O homem máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo
Texto de
Waldete BRITO
Doutoranda em Artes Cênicas (UFBA). Mestre em Artes Cênicas-UFBA.
Intérprete Criadora, Diretora Artística e
Professora da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA).
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