domingo, 12 de setembro de 2010

DAS TURBINAS DO CORPO ( TREINAMENTO, CIDADE, CAPITAL)




É no cerne do território-cidade e na ação do capital sobre ele que se faz pertinente para mim traçar possibilidades de diálogos entre práticas e formas de habitar com/no corpo.
O que se estabelece a priori como formas e modos de fazer dança na cena contemporânea hoje talvez seja – em primeira instância - um punhado de ideias que se manifesta de forma organizada, sistemática e contínua de inquietações, que a verbalidade não consegue dar conta. Talvez por isso mesmo o dar a ver de uma arte do corpo esteja recheada de elementos que deixam o expectador confuso, desconfortável, incomodado, desestabilizado, como se a “coisa” no momento do acontecimento da obra instalasse um momento de rebeldia, de manifesto, de provocação, apologia da necessidade de se fazer/praticar arte. Aqui, por vezes a relação de partilha se compromete, considerando que o que se entende como arte contemporânea não é ainda do domínio do tátil para aqueles que habitam um lugar que funciona na lógica do sistema, o capital.
O que se perde e o que se ganha na produção da arte contemporânea, na imposição de lógicas de existir? Onde o ganho e a perda se encontram e como se complementam? Será que o ganho e a perda acontecem no campo da Formação? Como o capital determina a Formação e como nos defendemos de recortes que reproduzem o discurso do capital em nossas produções?
O momento privilegiado do estar junto para se pensar dança, ou qualquer outra instância onde se estabeleça um discurso de/em arte contemporânea, parece que surge cada vez de forma menos potente. Observa-se no cenário das produções de dança contemporânea do país um escasso número de trabalhos que tem como ponto primordial para sua efetivação a grupalidade. As companhias de dança dão lugar cada vez mais à proliferação - muito bem-vinda- de trabalhos solos, duos e pequenos grupos. Talvez seja um indicador de como a lógica do capital proporciona apartes, separatismos, individualidades que proporcionam a eficiência de uma sozinhez e a permanência nela, como possibilidade de existência enquanto artista. Observar tal trajetória é constatar que algo está mudando e constatar também que o capital tem grande influência no campo da produção artística.
Para além do campo do afeto existem espaços e instâncias onde o sistema se manifesta em voz alta, plenificando e fortalecendo processos outros de composição, habitares que dão lugar ao efêmero, que por sua vez conversa diretamente com a problemática do que se institui como sociedade de consumo. A plenificacão de estados de sozinhez conversam com tal lógica. Investigar tal relação de perto é ficar atento para formas de desestabilizar um não-possível.
O projeto de encontros do Tecido Afetivo trouxe discussões que fazem refletir sobre esta questão, assim como fez elaborar questionamentos sobre formas de diálogos entre o capital e fazer artístico. Quando pensa-se, por exemplo, na questão da formação de bailarinos, fica a dúvida se a ação proporcionada à dança que se faz hoje tem o poder de desalienar aquele que a pratica e também no sujeito que está na posição de receptor/colaborador/plateia. O que nos motiva e o que nos faz agir em nossos processos de criação? O que está para além do Capital? O que nos instiga a criar possibilidades de existência como artistas, mesmo sabendo que um futuro com acúmulo de capital provavelmente não será uma realidade? Como estabelecemos discursos críticos sobre habitar um mundo regido pela lógica do capital, sem fortalecer a relação dominantes x dominados? Estamos atentos a essas questões?
Se focarmos o bailarino, por exemplo, e analisarmos sua forma de estar no palco/museu/local de apresentação, sua presença está comprometida-atravessada por tudo o que lhe é exterior. É possível então pensar num fazer artístico criticizante que manifeste discordâncias inclusive com o nosso fazer no acontecimento da obra? Como esse corpo é turbinado? Como ele se presentifica? É turbinado de que? Se presentifica aonde? Essas questões talvez não encontrem respostas imediatas, não se manifestam isoladamente, como coisa que surge de um “self”, tais questões talvez sejam consequências do esgarçamento de viver no limite do “ter que se fazer presente” e do “ter que fazer turbinado”, imposições do sistema, muito mais do que exigências de competência artística.
Fortaleza, geograficamente, fica em uma beira de mar, de região, de atenção político-social, de abismos. A problemática social da cidade se esgarça de forma trágica: assaltos, assassinatos, drogas, transtornos mentais, prostituição. A riqueza da cidade está dividida entre algumas famílias de classe alta, que detêm a concentração de renda. Vivemos em uma cidade onde os privilégios são para pouquíssimos. O movimento da dança na cidade também se assemelha ao recorte de poder estabelecido pela sua geografia territorial-capitalística. O fazer dança em Fortaleza ainda encontra-se marcado pela prática nas academias, que direcionam também um dar a ver específico. Aqueles que saem de tal condição para experimentar outra forma de se praticar dança chega impresso de valores estéticos e sociais. Na maioria das vezes o diálogo com a dança contemporânea não se dá de forma confortável. Processos solitários de desestabilização se constituem, provocando a revisão dos conceitos e desmistificando pré-conceitos sobre a prática da dança que prescindam de espelho, sapatilha e linóleo.
O que se modifica em nós quando nos propomos essa descoberta? Ainda falamos de estranhamento, ao optarmos por pés descalços? O que determinou o desuso das sapatilhas de ponta, sapatos de sapateado, tchutchu? Em Fortaleza podemos perceber que quem tem dinheiro se familiariza mais facilmente com diversas técnicas de dança, enquanto quem não tem, como fica a espreita de oportunidades eventuais, cursos livres, workshops e projetos sociais que fomentem o trabalho em dança. O que sobra - a boa sobra – é o desejo de se presentificar na dança. E até aqui o capital se manifesta, limitando possibilidades, fomentando seleções competitiva e editais.
Como então traçar planos de trabalhos que provoquem afetos, que desestabilizem a lógica do impossível? Como pensar em uma não-presença que turbine a presença? E o que se estabelece como presença nessa lógica capitalista? Como não ser leviano?
Não quis fazer citações de Marx, Engels, Gadotti, Ivo Tonnet... Paulo Freire disse em algum lugar “o mundo não é, o mundo está sendo”. Estou tentando acompanhar o mundo, tentando entender por onde ele vai, fazendo minha crítica, ainda que calado, atravessado, mais sentido do que ofensivo, mais gente do que bicho, lutando internamente, estou tentando ser um “sendo”.
Um amigo outro dia me disse uma frase que me emocionou bastante, falou que estava quieto porque estava incendiando por dentro, tendo um incêndio interno, esses incêndios ninguém consegue ver ou apagar, nem sentir o cheiro do queimado, aquilo ficou em mim, achei bonita a imagem, assim como a achei dolorosa... quase que fez chorar, calei.
Pensar e sentir como um incêndio interno me parece lógico, a gente passa muito forno, quintura, secura na lida diária em nossos afazeres que se propagam externamente, para o mundo e com o mundo, o que vaza disso é o encontro, o mínimo de contato, as vezes como espinho que fura o dedo do pé, miudinho, mas faz ver. Fazer incendiar possibilidades, encontros, discussões e afetos parece também lógico e genuíno, pois isso escapa ao dizer, escapa ao tocar com as mãos, não se molha nem se queima.
Talvez o incêndio interno seja o que me turbina, e talvez o que faz o fogo crescer seja a resistência, que eu não me perca, que eu não desista, que não nos percamos, que não nos desistamos.