domingo, 25 de outubro de 2015

"ESCREVO-TE ESTAS MAL TRAÇADAS LINHAS..." Estou há alguns dias movido pelo desejo de manifestar escrita. Essa coisa de escrever sempre vem com um misto de incerteza, medo ou retração, como algo que depois de solto no mundo não mais se prende, não mais se apaga, talvez até se ressiguinifique, mas é lançado, grafa tempo e espaço, vira memória, e depois de virar memória (... calma...talvez não vire memória, refletindo mais um pouco desconfio que não é uma questão de virar memória, porque mesmo antes de sair de mãos e mentes, já é memória.) Não há mais como construir o caminho de volta. Li recentemente, muito recentemente a biografia de minha ex professora de balé clássico Wilemara Barros. (Aqui, nesse inicio de escrita soltei o computador, deitei, bebi dois copos de água, contei meus livros, achei que fosse bobagem escrever, desisti.) Escrever é um ato de partilha, coragem de bicho. Escrever sobre alguém, sobre a história de vida de alguém é cavar espaços para reconhecer o que se é enxergando-se no outro. Refletindo um pouco mais, retomei as mãos o computador, tirei toda a roupa, deitei na cama, pus Maria Callas na vitrola e cuidadosamente fui movimentando me por essas letras que na rapidez da digitação parecia me a movimentação de um balé, um balé de dedos. Nada mais propícios a imagem e a sensação ja que é de dança que se escreve, de quem faz danca, de quem é danca. É difícil definir a razão dessa escrita, mas sei que é preciso escrever, pois essa leitura me inquietou e me mecheu, como água quente jogada em bicho que estava dormindo, como buraco que se abre sobre pés, como casa que cai, como vida que se acaba inesperadamente. Wilemara Barros é uma mulher incrível (me perdoem se parece piegas ou lugar comum a expressão através da qual me refiro a pessoa de Wilemara Barros), mas ao ler a Biografia de Wilemara, a sensação de incredibilidade do ser humano que a habita me salta a alma, me enebria os sentidos e me treme mãos. Garganta seca, nenhuma saliva, nada de cuspe. Conhecer essa mulher fantástica, bailarina de profissão, menina de periferia, ousada, corajosa, não é tarefa muito fácil, pois Wilemara é tímida, fala pouco, observa muito, seu conhecer se confunde com o seu ser, ambos são imensos, como céu. Me sinto nuvem, espaçada... se adjetivo Wilemara como céu, adjetivo a todos que foram e que são seus alunos: nuvens...pois enquanto professora Wila é abarque, possibilidade, faz chover, molha...com Wila eu tambem chovi, ainda que como sereno leve, garoa, gotículas. Lembro com muita nitidez de Wila nos corredores do Theatro José de Alencar na época do Colegio de Danca do Ceará, fui aluno da escolinha de rapazes do Professor Flávio Sampaio que funcionava naquela instituição. A escolinha de Flávio proporcionava aulas de balé clássico para rapazes que tinham o desejo de aprender a técnica clássica. As aulas iniciavam pontualmente as sete da matina, finalizavam por volta das nove, momento em que iniciavam as aulas dos alunos do Colégio de Dança do Ceará, foi nessa época que vi Wila pela primeira vez, foi nessa época também que pela primeira vez tive o privilégio de ser aluno da Diva da dança cearense (não confundamos a Diva da dança Wilemara Barros com as divas do rebolado da world music) fato que me deixou tocado, apaixonado pela danca classica, embora sempre tenha tido a noção de que aquela tecnica nunca seria por mim desenvolvida a contento, pois nunca tive fisico privilegiado, sempre fui um jogador de futebol em se tratando de alongamento e outras possibilidades que a tecnica classica exige. Mas, ainda assim, Wilemara me disse ser possível dançar e através dela desenvolvi muito apreço e paixão por aulas de balé clássico. Mas não é sobre isso que eu deveria estar aqui escrevendo, dessa fase o que me ficou na memória foi mesmo a figura ímpar de Wilemara Barros, o cabelo, a cor, os óculos, os saltos, os mini shorts, as mini saias, as bolsas, o andar, o olhar... e o silêncio... Sim, Wila sempre foi muito silenciosa, coisa de quem sabe demais, coisa de quem tem asas, coisa de quem é céu. Fui coreografado por Wila, música de Tom Jobim, academia Bailart. Nunca pensei que teria em algum momento, por menor que fosse, a confiança dessa magnífica professora em executar alguns passos por ela criados, passos ousados para um sapateador desastrado. Havia um chapéu, um paletó, uma ideia de espaço na cabeça dela, no meio disso tudo havia uma generosa injeção de coragem e incentivo vindo de sua parte. Dessa época, foi essa injeção e construção do possível para uma danca em mim, o que me fez ter coragem de dizer para mim mesmo que eu era uma pessoa de dança. Isso devo a Wila. Quando falo de dança, falo da possibilidade de uma dança outra sem os amados sapatos de sapateado nos pés, que me foram calçado por Valeria Pinheiro. Ao ler a Biografia, revivi, ao falar do DEVIR de Fauller na conclusão do Colégio de Dança do Ceará, reconheci me por muitas vezes acompanhando aquela trajetória, pois estava la, ao lado dos grandes, dançando como bailarino convidado no trabalho de Valéria Pinheiro, dividi as coxias com Wila. Pausa, visto cueca, procuro o programa da noite da apresentação, sei que era amarelo... não recordo o nome do programa. Busco, rebusco... não encontro. Volto para a cama e olho o computador... "jamais enviarei isso para Wila". "Por que Wila é sempre tão doce, atenciosa e delicada comigo? Mas Heber, não é só com você, Wila é assim!" Meus pensamentos. Água, mais água, café, pão, biscoitinhos doces...grito do quarto após me trancar novamente e tirar toda a roupa :"mãe, a senhora pode me fazer um chá?" Tenho a ingênua sensação de que para escrever sobre Wila, a nudez seria uma porta de acesso, porque se Wila é céu, se sou nuvem, se me molho, se Wila me choveu, Wila me deu nudez, me fez tirar roupa e me fez trocar de roupas. Retornando - agora de bruços no chão de madeira do meu quarto, excitado - Ano passado recebi uma mensagem do marido de Wila, meu querido Fauller, pessoa que tenho extrema admiração, que me e uma referência, que me é modelo, que me excita a criar, que me desafia, que me instiga, que me arrebenta. Na mensagem me convida para uma noite de performances em homenagem a Wilemara Barros pelos seus 50 anos de idade no Palco Principal do TJA. No momento achei que era brincadeira, como eu, um sapateador desajeitado, sem muitas possibilidades físicas, iria me apresentar para homenagear a maior bailarina classica de Fortaleza? Não levei muito a sério, até sorri depois de desligar o computador, e naquela noite muito aflito eu não consegui dormir direito. Comecei a realizar que realmente o convite havia sido feito a mim e que eu teria que fazer algo, pois era da Wi lemara Barros que se tratava. Dor de barriga, suor noturno, medo, "o que as pessoas vão dizer?" Por que eu? Organizei minha performance como pequenos bilhetes, coisas que eu gostaria de ter dito a Wila ha muitos anos, desde a época que foi minha professora de balé na escola de rapazes, havia coisas a serem ditas desde a época em que havia me coreografado na academia Bailart, desde a época em que nos encontramos pelos corredores da Boite Divine, desde a época em que foi minha professora na primeira turma do Curso Técnico em Dança... eu sempre tive muito o que dizer a Wila, porque sempre fui muito grato aos olhares, aos entendimentos, aos incentivos que dela vinham não só a mim, mas a todos os que juntos de mim sonhavam em ser bailarinos. Ler a biografia de Wilemara, me fez rever a própria vida, minha trajetória pessoal, artística, sexual e hominidea. Finalizei a leitura aos prantos, olhando as fotos, com as mãos tremendo, soluços me invadindo a garganta, boca aberta no travesseiro, mãos geladas... E me calo, com a certeza e a dívida de muitos dizeres a Wilemara Barros, o maior deles é o de muito obrigado, obrigado por ter sido minha professora, por ter sido minha coreógrafa, por ter me injetado a possibilidade de uma nova danca, por ser tão calada e saber tanto, por ser corajosa, por ter corrido em busca de todo sim que lhe entregaram com o um não. Wi lemara Barros é a própria dança, não faz dança porque é dança. A você minha querida Wila, muitos passos, muita vida, muita música, que minha dança, que também é tua, possa servir a ti sempre que me couber, enquanto tu fores alcançável. Com amor, carinho e gratidão. Heber Stalin