domingo, 24 de maio de 2020

Anotações para um 25 de maio: Inquietações, percepções, suposições e outras questões




1. Acolhamos uns aos outros

Estou há exatos 80 dias sem calçar o sapato de sapateado. Tempos difíceis esses, em que nos damos conta do pesar de tais contagens. Tenho contado também, entre perdas e ganhos, a quantidade de árvores que vejo através de minha janela, a quantidade de plantas espalhadas pela minúscula varanda do apartamento, a quantidade de cds ainda restante nas estantes de meu quarto, a quantidade de livros lidos, o dinheiro, o que a falta do dinheiro me impede de contar. Tenho contado vidas e mortes, desaparecimentos, violações, tenho contado idas e vindas, nesse mesmo tempo tenho contado esperanças. Assim têm sido os dias.
Durante esse período de isolamento, na solidão frutífera de meus espaços, todas as vezes que a boca seca, as mãos gelam e os pés se inquietam, eu tomo água; caminho um pouco em círculos; deito no chão; mãos ao rosto. Paragem. Súbito o som do ventilador de teto do meu quarto inspira música, em pé novamente trilho o circuito do que me é possível mover. Repito. Repito algumas vezes e em instantes isso também se exaure.
Sento… pés descalços no silêncio do quarto, arranho o chão em contagem simples e direta de shuffles, taps. Balls. Crio imagens, produzo sensações de um estágio de vida que se faz presente na ausência do possível necessário. Falo do possível como uma necessidade de vida, de impulso, de movência, querência, essência. OBS: Gosto demais de palavras que após seus radicais sucedem “ência”. Já perceberam como são lindas? (Pausa).
Esse texto deveria dar conta de uma escrita sobre a comemoração do dia internacional do sapateado, o 25 de maio. Deveria, no momento não estou certo de que será possível.
Me perco entre imagens, memórias, textos, livros, chapinhas frouxas, cadarços quebrados, sapatos descolados… um emaranhado de vida que legitima uma existência transversalizada por outras mil vidas… aqui, entrar e sair; passar e ficar; observar e desacreditar se misturam entre si amalgamando sentires e causando impressões inenarráveis de frustrações, feridas egocêntricas cicatrizadas e a necessidade mais do que permanente de seguir, porque quando penso em sapateado, claramente me vêm a mente e ao corpo uma rajada de coragem, persistência ( já falei que me amarro na “ência”), ousadia e paixão. Levanto um pouco, olho pela janela, após refletir um pouco mais escrevo.
O corpo sente, o ouvido sente, o pé sente. Contestação lógica, óbvia e até boba para qualquer sapateador, no entanto, o fluxo do sentir considera também a constatação da urgência do movimento, este se dá nas mais diversas facetas, das mais variadas formas e com isso produz os mais diversos sentidos. Os meus sentidos, em dança, estão ligados muito menos ao sapateado do que às pessoas que me são cúmplices nesse fazer. Atrevo-me a lançar.
Penso a prática do sapateado como um fluxo de produção de “modos de vida” que legitima existências levando em consideração o modo de pensar e ver o mundo em uma relação muito menos estética do que ética. Talvez porque a forma como sapateamos seja uma forma inerente de se dizer de si e do mundo criando pontes e alianças entre pares e ímpares que se permitem – embora existam diferenças entre si – ainda que por alguns minutos de aula, ou de espetáculos, estarem juntos e ocupados em um só propósito.
É uma modalidade de dança que, a grosso modo, parte de um e vai agregando outros. Constitui coletivos e grupos cujo o principal mote de mobilidade é a cumplicidade com a qual decidem vivenciar, saborear o momento presente, o momento único de realização de determinado som ou sons, em determinado lugar, em determinado dia e hora, ou não! É a própria arte em acontecimento.
Penso o traçado artístico de coreógrafos e bailarinos\sapateadores com Heidegger. Para esse filósofo alemão, no tocante a arte, todo ensaio, toda aula, toda tentativa de se chegar a um resultado estético, já é o próprio acontecimento artístico. Em Heidegger, ensaios, aulas, rascunhos… são as verdadeiras obras de arte, posto que, o ser, em Heidegger, não existe no estático, é no gerúndio que se dá o verdadeiro acontecimento artístico. Estamos sapateando, estamos ensaiando, estamos doando, estamos compondo, estamos optando, com isso estamos fazendo arte! Mergulhando em Heidegger fui me descobrindo, me buscando. Continuo estudando Heidegger, permanecendo.
De onde vejo, constato: (pode parecer mais uma constatação óbvia) – há sempre uma fala, um discurso quando sapateamos. Seja na organização da coreografia, na ordem de entrada dos sapateadores em cena, na escolha da música, na opção de ensaiar mais e até mesmo na opção de ensaiar menos. Ouso dizer que se escolho, falo, opto! E isso constitui discurso, organiza cena e amplifica o que implicitamente dizemos quando estamos no palco (seja ele de que natureza for) ou na sala de aula. Namorando a filosofia paquero com Aristóteles: “O ser se diz de várias maneiras”. Assim sendo, respeitemos uns aos outros, respeitemos. Acolhamos uns aos outros, acolhamos!
Respeitemos uns aos outros para além dos currículos brilhantes, cheios de números, prêmios, viagens, nomes difíceis. Não quero com isso dizer que devamos abrir mão de celebrar nossas histórias de vidas, trajetórias artísticas muitas vezes caras e dolorosas, cheias de sacrifícios, barreiras, pedras no caminho e uma imensidão de “nãos” a nós distribuídos de forma gratuita e leviana ao longo do caminhar.
Falo, eis o ponto primordial, de nossa disposição genuína para perceber e acolher o que está ao nosso lado e muitas vezes não conseguimos enxergar, não conseguimos dar a mão, uma palavra, um copo dágua que mate a sede do conhecimento e possibilite parcerias. Na mesma proporção do ensinar, está a proporção do aprender, já nos disse Paulo Freire. Descobrir esse estado de prontidão ao outro é libertador e promove crescimento humano. Informo de forma repetida, porque a repetição é uma forma de realizar “alcances”: Estar pronto ao outro promove crescimento humano.
Penso com o auxílio de Gilberto Gil, metáfora repleta de realidade. Suspeito que, estar à disposição do outro é o ponto de partida para uma relação minimamente bonita, empática e, por que não? inesquecível. Gil nos pede: “Traga me um copo dágua tenho sede, e essa sede pode me matar, minha garganta pede um pouco de água e os meus olhos pedem teu olhar” Pergunto: “O que acontece perto de nós a título de sapateado?” “Como olhar menos para mim e o que eu faço e direcionar o meu olhar para outras perspectivas de colaboração, atenção e acolhimento?” “Como oferecer um copo dágua?” Se essa reflexão não fizer sentido, acredito que sinceramente será preciso repensar o nosso lugar no mundo não é mesmo? suspeito mais uma vez que, em se tratando de arte, seja ela qual for, nunca, mas nunca mesmo deve ser apenas sobre mim. Se assim o for, há algo de errado. Daí a necessidade, de se repensar processos formativos, relações de ensino-aprendizagem, festivais competitivos e uma celeuma de pontos que não cabem ser discutidos aqui. (Pausa pra o café)

2. O sapateado em período de isolamento – algumas questões.

Em tempos de isolamento, parece-me que o zoom para as fragilidades humanas se amplifica…. Literalmente tudo fica maior: medos, inseguranças, saudades, carências, ansiedades, a quantidade de remédios… tudo se amplifica. E com isso a capacidade de se reinventar também se dá de forma amplificada.
Observando daqui (quarto, janela, computador, redes sociais) tenho percebido o louvável esforço de sapateadores pelo Brasil e pelo mundo de se reinventarem através de aulas, cursos, seminários, lançamentos de livros, ensaios, bate-papos sobre sapateado e tudo me parece tão próximo e (por uma questão bem particular) tão distante. Lanço aqui algumas perguntas.
Pergunto porque a intenção é dividir as inquietações, pensar junto: “Conseguiríamos viver sapateando se essa forma que estamos sapateando hoje, através de lives, fosse a única maneira de se manter sapateando?” “O que se perde nessa metodologia de ensino?” “Tem ensino de sapateado nessa metodologia?” “É possível ensinar os primeiros passos através de uma live?” “O que se ganha?”.
Trago aqui a Mestra Cintia Martin para nos lembrar que: “Para se ensinar, é preciso ter consciência de uma série de itens, como: conhecimento profundo da técnica, a história e a origem do sapateado, terminologia correta, noções básicas de anatomia e noções básicas de música. Além disso, muita paciência, disponibilidade, disposição, criatividade e humildade”. (Trecho retirado da apostila TOQUES: VIVENDO, APRENDENDO E ENSINANDO O SAPATEADO). Curiosamente, o título de sua publicação traz memória Heideggeriana.
Quais implicações, a sugestão de Cintia Martin trazem para o atual cenário de ensino do sapateado no Brasil? Seja ele on-line, seja ele presencial? Estamos prontos? É possível? Há outras considerações registradas para as competências de ensino no âmbito do sapateado?
Cá estou refletindo sobre essas questões simplesmente porque: 1. preocupação com um método que me parece humanizado e eficiente que é o corpo a corpo; 2. Caretice minha, assumo e assumo que minha forma de olhar para isso pode ser um problema sim.
Estou na vida, como em Heidegger e como em Martin: vivendo, tentando e aprendendo. Gostaria muito de discutir sobre isso porque me parece bem claro que já existe um mercado aberto para essa metodologia de ensino. Não é uma crítica, busco entender. Quanto mais formas de se fazer chegar o sapateado as pessoas, melhor, para todos nós. No entanto: “Que tipo de sapateado chegaria às pessoas no formato online?”
De todo, acho importante atentarmos para o fato de que existem metodologias diversas, cabeças diversas, pessoas diversas. Seus fazeres dizem muito de si, como já colocado a cima, importa, entretanto, que pensemos em formas de agregar, presencialmente ou virtualmente. Mas insisto, curiosidade mesmo: “É possível? Através do online?”
Acredito na presença física como potencializadora de aprendizagens, porque aprender tem a ver com o olhar, com o fazer junto, com ouvir a respiração, com o manuseio do corpo em algumas situações, com o suor respingado, com o chão dividido, com a troca de sons, com o papo descontraído que acontece ao amarrar de cadarços com o colega ao lado, com a combinação da cerveja logo após e ainda: com a relação intrínseca entre coragem e medo, vergonha e ousadia. Quem nunca tremeu de nervoso em uma sala de aula de sapateado com certa insegurança em executar sequências de aula? Faço um contraponto: no modo virtual, essa insegurança diminui?
Que fique entendido desse escrito que, a intenção não é desqualificar, negar, anular o que o momento de isolamento social nos oferece – eu não teria estudo ou conhecimento suficiente para isso, estou buscando saber – Mas antes de tudo criar conexões entre o que fazemos com o que fazemos e da forma que fazemos. Importa olhar para isso buscando formas de fortalecer outras metodologias e modos de ensinar e aprender, acredito que enquanto professores (em algum momento todos o somos) seja importante estar atento.
No meio da problemática aqui discutida, existe a velha questão da desigualdade do país que exclui alguns alunos por falta de acessos, computadores, celulares, internet… temas e questões para um outro momento. Mas que não fechemos os olhos e os ouvidos para as desigualdades. Elas, mais do que qualquer outra situação, também necessitam de olhar, cuidados, empatia… acolhimento.

3. Celebremos um ano inteiro: É possível, é necessário

Celebremos o 25 de maio. Há muito o que celebrar. O Brasil, grande e diverso traz na sua história do sapateado as marcas de vivências que ultrapassam a lógica do tap dancing americano. O nosso país traz em sua cultura de povos um acervo grande e vasto de sapateios que, se diferenciam do tap dancing americano devido o uso de chapas de metal nas solas dos sapatos por lá usadas.
Bastante polêmica a suposição de que o Brasil é um país que sempre sapateou. Mas observemos: O frevo, o xaxado, o samba, o maracatu, as bandas cabaçais do interior do sertão do Cariri, as danças de reisado, a chula, a catira são danças que por si só têm sapateio, têm sapateado.
Sem desejar reabrir o ciclo das polêmicas sobre a questão, continuo suspeitando que, o que difere nossos sapateios do tap dancing americano é a ampliação do som através das chapinhas de metal. Valéria Pinheiro (Ce), em décadas de pesquisa em sapateado no Brasil, já desmistificou de forma brilhante essa questão, rompendo barreiras e fazendo a América perceber que o sapateado também se legitima de forma potente no Brasil sem ter como parceira fiel apenas o jazz, o lind hop, o blues. Lindo trabalho. Obrigado Valéria Pinheiro.
Importa, importa muito dizer que, no que diz respeito a um “sapateado brasileiro”, não se trata de pegar determinada música: xaxado, samba, frevo, ou outra qualquer e criar uma sequência lógica de passos dentro de uma contagem binária que caiba dentro da partitura musical. Está implicado aqui, o trabalho árduo de pesquisa de movimentos de pés, dinâmicas, volumes e velocidades que dialoguem de forma coerente com a música brasileira. Longo e exaustivo processo, muitas horas de estúdio, muitas horas seguidas com o sapato de sapateado no pé.
Assim como Valéria, outros nomes não menos importantes traçaram ao longo dos anos formas de contribuição para o desenvolvimento do sapateado. Cintia Martin talvez tenha sido a primeira brasileira a se preocupar em registrar dados, metodologias de ensino e conhecimento musical para estudantes. Além disso transcreveu exaustivamente a nomenclatura do sapateado, buscando facilitar o acesso quando ainda não sabíamos a diferença entre um toe drop e um heel drop, suspeito que através de Cintia a gente deixou de falar “ponta calcanhar” ou “pisa pisa”. Obrigado Cintia Martin.
Eu não planejei trazer nomes ou particularizar homenagens porque sempre corremos o risco de ser injustos, mas não dá para falar do sapateado no Brasil sem falar também do Mestre Steven Harper que com seu conceituado TAP in Rio abre portas para sapateadores jovens aprenderem e descobrirem o sentido do sapateado através de aulas com professores, em sua maioria, brasileiros. Bia Mattar tem um papel ímpar na disseminação do sapateado enquanto linguagem brasileira, pois em Floripa foi ela a pessoa que apresentou outra possibilidade de sapateio, fugidia do jazz e do blues. Obrigado Steven Harper. Obrigado Bia Mattar.
É um recorte. Esse escrito não daria conta de agradecimento algum, são muitos feitos que esses profissionais executaram e continuam executando no país para se manter viva a paixão e o fogo, o desejo de realizar sapateado. Precisaria agradecer também a Marchina, Maurício Silva, Stella Antunes, Amália Machado, Christiane Matallo, Flávio Salles (in memória), Kika Sampaio, Luiz Baldijão, Rachel Cavalcanti, Vera Passos, Thiago Marcelino, Flávia Costa. Me perdoem a injustiça de deixar alguém de fora, não é intencional.
Alegrias somadas, passos divididos em aulas, mostras, cursos… há em mim um imensurável desejo de que essas trajetórias se perpetuem. Que o sapateado em nós não morra. Que resistamos frente aos incontáveis nãos que recebemos ao longo da vida, ao longo da carreira. Para isso invoco e convoco aqui as gerações pós-mestres, sapateadores que delineiam um outro tempo de sapateado, traçando pontes, conectando histórias, geografias e pensamentos. Descobrindo fazeres.
Saúdo aos que estiveram em algum momento comigo como alunos ou colegas de trabalho. Hoje celebro também você Giuliano Antônio, Fernando Flesch, Leonardo Dias, Renata Defina, Marina Coura, Dudu Martinez, Melissa Tannus, Cinthia Pequeno, Gisella Martins, Bianca Moreno, Rafaelle Oliveira, Juliana Castro, Juliana Garcia.
Toda a minha reverência à Cia dos Pés Grandes pelas parcerias, pela trajetória, pelo atrevimento e teimosia. Celebro o amoroso sapateado que partilhamos em via de mão dupla, o encontro potente e o desejo infindo de fincar o pé nesse chão duro que acaba amolecendo de tantos afetos. Com vocês o sapateado se faz poesia e acalanto como em um poema de Manuel de Barros quando diz que: com vocês “eu queria crescer pra passarinho”. Obrigado, muito obrigado Rodrigo Silva, Edson Sousa, Henrique Casimiro, Dudu Abreu, Fabinho Vieira, Pedro Júlio Roque, Lucas Teófilo, Rubéns Lopes, Jota Nogueira, Pedro Moreira, Adonai Elias, Anael Guimarães, Mauricio Batuta, Carol Benjamin, Angélica Nunes.
O dia 25 de maio é o dia de aniversário de Bill Bojangles, por seu feito o celebramos e o rendemos reverências inquestionáveis. Por vossas obras, por vossas histórias, por vossos fazeres eu também celebro o dia do sapateado em 08\06; 06\11; 14\1; 11\03; 10\12; 16\07, 26\08; 21\12; 09\11; 06\12; 06\06; 15\02; 30\11; 11\07; 29\10; 24\06; 05\05; 30\08; 21\05; 17\11; 03\05; 13\05; 28\09; 04\08; 19\09; 14\04; 24\11; 12\02; 29\03; 24\01; 31\10; 19\12; 03\03; 14\12; 13\09; 15\05. Dias de nascimento, renascimento, invenção e reinvenção do sapateado brasileiro.
Nesse dia 25 e por todos os outros dias de celebração do sapateado me dispo de pudores, medos, egos e orgulhos, erros e acertos e me rendo com toda gratidão e amor a vocês que escrevem essa história de forma idônea, diversa, bonita e ímpar. Desejo vida-longa a esse caminhar, desejo perseverança. Que sentemos nas pedras encontradas no meio do caminho para melhor pensar como removê-las. Desconfio que a felicidade plena não existe, mas acredito que alegria e coragem nos elevam a patamares de sensações deliciosas, extremas. Sigo com vocês, sapateando para mexer o mundo. É uma alegria fazer parte disso. Cada tempo a seu tempo, porque como nos ensina Clarice: “…em matéria de viver, não se pode chegar antes…”

Evoé, Axé, Obrigado.
Heber Stalin