quinta-feira, 25 de maio de 2017

O sapateado em nós!


Todo ano, ao se aproximar o dia 25 de maio eu fico ansioso. Aquela ânsia de criança que deseja um doce do pai ausente, um presente da madrinha que vem de longe, ânsia de passar a mão na cabeça de cachorrinho novo, desejo de que algo se revele, algo inesperado, súbito, potente de alegria.
Passei o dia de hoje revendo com alegria, rebuscando em minhas memórias o encontro que tive com a arte do sapateado, o compromisso que assumi de forma espontânea e ingênua com a arte que me alimenta de alegrias e desafios cotidianamente.
Lembrei com riso no canto da boca e balançando a cabeça das inúmeras vezes que relembrei sequências de aulas em paradas de ônibus e estações de metrô, muitas vezes fazendo desses espaços verdadeiras salas de ensaio (quem nunca praticou uma sequência de sapateado à espera de um ônibus que atire a primeira pedra). Fortaleza, Rio, Sampa, EUA, Colômbia, África… tantos lugares!
Lembrei também de quando, em 2002 (se não me falha a memória), encontrei em uma sala de reuniões em Chicago nos EUA o sapateador Van Porter, que me viu com os sapatos de sapateado nas costas e me perguntou se eu sapateava, eu disse que sim e me pediu então que o mostrasse. Calcei o sapato e mostrei um pouco do samba que aprendi com Valéria Pinheiro. Aquele momento foi mágico, não sabia quem era Van Porter, não sabia do grande sapateador que ele era e quando lembro que me permiti “ter algo a mostrar” me sinto envergonhado, no bom sentido. Lembrei também das noites de insonia com Lane Alexander em quartos de hotéis ao longo do país, tínhamos mania de procurar espaços em hotéis para um pouco de prática do sapateado e criação de algumas sequências juntos!
O bom da vida é que ela segue e ela segue com um propósito, não segue à toa. Fiquei rememorando as aulas que tive com Acya Gray, Sam Weber e Diane Walker, por intermédio de Lane Alexander que também me ensinou sobre sapateado, vida, generosidade e amor.
Antes de tudo isso lembro uma quarta-feira fim de tarde nos arredores da Praia de Iracema em Fortaleza, no Teatro da Boca Rica o encontro com Valéria Pinheiro, seus olhos famintos a convidar para aulas, ali tudo começou. Ali tudo recomeçou, pois nosso “estar junto” vem de outras vidas. Certeza posta!
Reflito 1: Devemos amar o sapateado como possibilidade, acidental ou não, de encontros.
Cia VATÁ foi minha escola e minha universidade, o sapateado ali desenvolvido lançou-me a auto-desafios cotidianos, provações terrenas de desejos e descobertas que iniciam e finalizam na técnica de um sapateado que se mostra potente e íntegro porque se diz de forma peculiar, organizando o caos que pode ser entendido como reflexo da própria vida. Lugar de construção, trocas, aprendizagens, amores, medos e pequenas confusões. Traçados de vidas que se aglomeram a formar colchas de retalhos que propõem sentido único: a coragem.
Reflito 2: O sapateado agrega, congrega, prega, APEGA.
Atrevimento de dois: Cia. Do Barulho, primeira instância de criação em sapateado com Aspásia Mariana, estudos, tentativas, editais, um Mercado que não mais do que pinhões nos fustigava e cutucava dizendo que ali também havia amor. Partilha, parto, partida.
Reflito 3: Sapatear a despedida também é sapateio.
Entendi desde sempre que o sapateado poderia (sonho com isso) servir como mola de mobilização de pessoas, porque o sapateado é alegre e democrático, sua história vem de resistência a opressões e violações, é negro, é feminino, nasceu pobre e nunca achei justo que se tornasse propriedade de quem tem posses e pode pagar aulas em academias, viagens e festivais. Não. Não deve se manifestar apenas dessa maneira. Me incomoda MUITO que as pessoas o vejam, se infectem dele e ao encarar a realidade de sua aprendizagem (na maioria das vezes dentro das academias) se sintam frustradas. Ouço bastante lamentações de pessoas do tipo “sempre achei lindo, mas nunca pude pagar”.
Sabemos que nós sapateadores temos formações caras, cursos são caros, aulas são caras, viagens são caras, os próprios sapatos são caros, o acesso não se dá de forma simples e não acho que isso seja culpa dos profissionais, na verdade não irei me alongar nesse mérito pois não é esse o objetivo.
Reflito 4: É preciso propor a acessibilidade ao sapateado.
Acessibilidade tem a ver com a possibilidade, possibilidade vem de “possível”. O que estamos a fazer para tornar possível o acesso ao sapateado? Como o sapateado está na periferia? Refaço: Ele está? Acredito que em algumas cidades essa possibilidade aconteça de forma legítima, mas aqui em Fortaleza não há fomento para essa área da dança e isso me inquieta.
Hoje, fim de tarde, eu quis calçar o sapato e ir fazer aula, trocar aula em um bairro da periferia, esse foi meu desejo de hoje para comemorar esse dia tão bonito, súbito lembrei: Não há esse lugar! - Fortaleza é um lugar de não lugares!
Nunca coube, nunca consegui me perceber em Festivais competitivos. Um adendo: O fato de não caber não quer dizer que eu seja contra. Porém, há uma instância de criação para os Festivais competitivos que acho violenta, a perspectiva de me colocar na condição de “ser pior” ou “ser melhor” do que o outro me assusta, pois não acredito que esse lugar seja um lugar confortável, prefiro acreditar que não. Esquizofrenia. Maltrata, exclui, ignora, sem levar em consideração muitas vezes o próprio sapateado e sua história de nascimento, sua ontologia. Assim como a história de vida das pessoas que fazem as escolas de sapateado que competem… longa discussão…
Reflito 5: O que devemos amar é o sapateado em nós, não o prêmio em nós!
Eu serei sempre aquele que, embora calado e tímido, estará sempre na torcida pela popularização do sapateado. Já trabalhei em algumas academias de dança, local também que não me encaixo pois a instância de produção de sapateado em academias tem uma dinâmica produtiva, quantitativa e isso também me agride.
Me agride porque existe uma maneira de fazer sapateado nas academias que não tenho habilidade para executar. Tenho profunda admiração por professores de academias que conseguem montar um trabalho para uma competição por exemplo que deva durar 2 minutos e meio ou algo assim. Não consigo cronometrar o que meu pé quer dizer. Reforço: não estou dizendo que não acho admirável, estou dizendo que: Eu não sei fazer.
Reflito 6: Reconheço o sapateado como a possibilidade de ser inteiro!
Há um movimento no nosso país que tem instigado as pessoas a viverem Cias. De sapateado, isso é muito positivo pois nos faz pensar de forma agregada. Quando pessoas se juntam para sapatear a alegria parece se instaurar, permanece ali uma ambiência fluida de trocas que estão para além do som produzido pelas taps, é de vida que estamos falando ali, não só de sapateado. Isso é bárbaro, isso é de uma potência indescritível.
Eu gostaria de hoje solicitar aos meus amigos sapateadores que em algum momento pensassem suas ações em sapateado em benefício de algum segmento social que não fosse apenas a competição. Pergunto: Como o que fazemos em sapateado pode ser útil a alguém? A população idosa? À população de pessoas doentes em hospitais? À população de rua? À crianças vítimas de exploração de trabalho e sexual? À comunidades carentes de cultura?
Já pensaram em algum momento sobre o que mais podemos fazer com o sapateado que temos? Tenho me inquietado muito com isso e não estou falando de caridade. Abrir espaços, desflorar matas virgens, usar calçadas e praças, sair dos shoppings centers e dos grandes teatros ainda que por momentos breves.
Estou a falar aqui de devolver ao mundo o que o mundo de forma tão generosa nos deu ou que lutamos muito para conquistar. Particularmente ando muito cansado e sem interesse em viajar para dar aulas sem um propósito outro que não seja aquele baseado no princípio da agregação, partilha e entrega, papo.
Reflito 7: Para que(m) eu sapateio?
Devaneios disseminados, sigo pensando e repensando o sapateado como uma forma de estar no mundo, como uma forma de não andar sozinho embora eu reconheça que, aparentemente somos muitos, mas olhando de perto somos bem poucos.
Eu gostaria de hoje poder abraçar aos amigos/ídolos do sapateado brasileiro que encontrei ao longo de minha caminhada, reforço que o desejo pelo encontro é uma constante em meu coração.
Obrigado a Cia. Dos Pés Grandes por ser o motor de incentivo, alimento do meu desejo e da minha alegria, sujeitos cúmplices da partilha deliciosa da alegria e afetos que o sapateado propõe.
Obrigado à Cia. VATÁ, por ser casa, lugar que retorno sem precisar bater na porta ou perguntar se “posso?”
Algumas referências:
Cintia Martin, me encontrou no Rio de Janeiro, papeou, sorriu, abraçou e acolheu, obrigado por você ser sempre tão generosa, ouvinte, atenciosa… obrigado pela sua leveza, passarinho.
Steven Harper, querido, abridor de portas, obrigado pelo TAP in Rio, por confiar no meu trabalho, por ser gentil, por possibilitar tantos jovens a se tornarem professores no Festival que é a maior vitrine do sapateado no Brasil.
Adriana Brunato, pela ousadia da CBS – Cia. Brasileira de Sapateado – tempos lindos e inesquecíveis, não há como esquecer a sua trajetória.
Bia Mattar, amiga, mestra, inesquecível as nossas aulas em Floripa em tempos de paixão, quando tudo era azul, olhos e mar.
Juliana Castro, obrigado por Brasília sapatear… Tribo das Artes… saudades… bons tempos!
Julhiana Garcia… que sapateia um Ribeirão de todas as cores...
Bianca Morena e Luciano Oliveira, gentileza… alegria e luta por um Recife que sapateia.
Lane Alexander, Katherine Krammer, Lynn Dally, Max Pollack, Roxane Semadeni, Acya Gray, Van Porter, Sam Weber all my love to You guys… always… all my gratitude.
Trabalhei com pessoas incríveis, profissionais que tenho imensa admiração, aprendi e aprendo muito com vocês, por isso também agradeço.
Agradeço a todas as escolas de sapateado que me convidaram, que me convidam para ministrar workshops e cursos, não listarei aqui para não correr o risco de esquecer e cometer injustiças.
E não poderia deixar de ser diferente, Valéria Pinheiro, enquanto houver vida haverá nós! Te amo com imensidão de universo e leveza de nuvem. Mãe, amor.