quinta-feira, 29 de março de 2012

Mundo vasto mundo


Um desejo de asas que consiste em uma enorme necessidade de deslocamento.
É do desejo de ser livre que me manifesto de peito aberto no mundo.
Estar aberto quer dizer muitas vezes que eu sou extremamente frágil, tenho medo do escuro, de chuvas fortes, de cachorros grandes, tenho medo do mar, tem dias que tenho medo de qualquer coisa que tenha um tamanho maior do que eu.
Quando penso em mudanças algo frio me invade e o desejo de me tornar morno e quente me invade o todo. Sou frio nas entranhas, o meu externo é o meu prazer, o meu interno é esconderijo, vício, egoísmo.
Não sei se falo demais ou de menos, não sei se escrevo de mais ou de menos e nem consigo mensurar se exerço minha condição de vida de forma excessiva,mas existe excessos em mim, e como disse Nossa Senhora Lispector, me entupo de vazios também, às vezes entendo o vazio como “coisa” potente.
Quem vive entre a cruz e a espada precisa de um mínimo de liberdade, precisa sentar em janelas, abrir portas, romper fronteiras e destruir cadeados, precisa também não temer o outro, respeitar as fortalezas e entender as fragilidades. Eu sou medroso, eu sou frágil, eu sou excessivo e tenho uma grande tendência a ser esvaziado.
Bocas me beijam e me chupam, corpos estão em mim, sou uma bolha de sabão feita de gala, sou marcado em outros corpos, minhas mãos desenham corpos, meus pés sapateiam fantasias e corpos nús, é na nudez que muito de mim existe, a poesia me disfarça o percurso pornográfico e o rio de gozo derramam esperanças em minha vida.
Tenho sentido muita saudade dos tempos de criança, olho para a vida e ela me convida à um estado de adulto que me machuca e me agride, as pessoas ao meu redor, as que me antecederam, estão diferentes, elas engordaram, caíram os dentes, se despentearam, algumas ficaram tão esquisitas... houve um tempo em que eu cantava “... aquele gosto amargo do teu corpo, ficou na minha boca por mais tempo, de amargo então salgado ficou doce, assim que o teu cheiro forte e lento fez casa nos meus braços...” de repente eu estou cantando “...Se um outro cabeludo aparecer na sua rua e isso lhe trouxer saudades minhas a culpa é sua...” e isso faz tanto sentido porque hoje eu tenho um carro e já fui um cabeludo na vida de alguém.
A minha cidade é uma pérola, um bicho esquisito, produz desigualdade a minha cidade, os meus amigos são a melhor parte de mim, eu sinto muito calor vivendo aqui, eu preciso de um pouco mais de frio, não de frieza!
Habitar um outro, estar em um outro lugar, reaprender a morar, nem que para isso eu tenha que reaprender a olhar para o meu lugar na cidade, mudar sem sair do lugar que se está também é possível e para sobreviver é necessário que pelo menos essa mudança seja feita. Deslocamento aqui, por aqui, a busca de um além que está para além de um quadrado cercado de mesas também quadradas e pessoas também quadradas vivendo em um mundo extremamente quadrado, ou, para enfeitar um pouco a escrita, um mundo cartesiano.
é... como dizia Drummond: “...mundo vasto mundo, se eu não me chamasse Raimundo...”

terça-feira, 20 de março de 2012

Das observações sociológicas



Fortaleza é uma metrópole que concentra a sua riqueza em uma pequena parcela da população, a outra parcela – que é muito maior do que a primeira – tenta se equilibrar ocupando cargos de trabalho onde a vantagem salarial não é muito satisfatória (satisfatória no sentido de satisfazer no cerne da origem da palavra, às necessidades básicas como alimentação, saúde, segurança e cultura) e assim a grande parte do dinheiro que gere a cidade está nas mãos daqueles, que com o poder do dinheiro nas mãos, faz crescer cada vez mais o ciclo da riqueza (o pequeno e injusto ciclo) e o ciclo da pobreza (o grande e mais injusto ainda ciclo).
Esse tipo de recorte social agrega uma série de problemáticas sociais fazendo com que as injustiças se perpetuem de forma desumana, fazendo quem é rico cada vez mais rico e quem é pobre cada vez mais pobre. Para além da discussão da riqueza e da pobreza existem fatos sociais que tentam de alguma forma mascarar e disfarçar a brutal desigualdade imposta pelo capitalismo, fazendo com que nos esqueçamos – ainda que momentaneamente – da real e dura realidade de conjuntura que uma cidade como Fortaleza vive. Nesse âmbito vivemos tentando nos equilibrar entre as demandas que o mundo – quase que inteiro – nos impõe através do sistema capitalista e o enfrentamento às desigualdades sociais que uma cidade como Fortaleza enfrenta devido à extrema desigualdade de renda entre a população. Nessa relação não existe um “não participar”, posto que somos agentes sociais, somos os causadores e os causados, somos os que agem e reagem, essa relação portanto é feita sempre no “agora”, segundo Peter Berger :
“... estar localizado na sociedade significa estar no ponto de intersecção de forças sociais específicas. Geralmente quem ignora essas forças age com risco. A pessoa age em sociedade dentro de sistemas cuidadosamente definidos de poder e prestígio. E depois que aprende sua localização, passa também, a saber, que não pode fazer muita coisa para mudar a situação.”
Berger nos coloca face a face com a força do capital, nos direciona a um reconhecimento do capital como fator condicional para o entendimento de nossas posições na sociedade.
Não podemos perder de vista o que simbolicamente representa morar em um país como o Brasil, um país lindo, diverso, festeiro. Somos um país que se apresenta tendo como principais símbolos: uma mulata, uma bola de futebol e um samba; na outra linha de simbologia temos o morro, a favela, a criminalidade e a prostituição, esses fatos são sempre cercados por discussões que não pretendem buscar saídas e resoluções sociais, quando se apresentam são como delatos e relatos, verdadeiros folclore sobre um povo que sofre ainda hoje os efeitos de uma colonização e um pseudo estado laico, dois fatos sociais que confundem ainda mais as operacionalizações da democracia e tentativa de igualdade social.
É no meio da bagunça social que se banaliza a condição humana, a micareta Fortal, por exemplo, é um fato social que apresenta explicitamente a extrema desigualdade através de estratificações sociais e relações de trabalho. Fortaleza é uma cidade que faz parte de um país festeiro, e assim como o país, tem as suas especificidades festeiras, existem, por exemplo, como manifestações de tradição cultural: Os maracatus, as bandas cabaçais, os blocos de carnavais, essas manifestações acontecem, ou aconteciam, de forma extremamente ritualística e democrática, proporcionando a todos os festeiros participantes as mesmas condições de diversões, o trabalho é dividido, a bebida é dividida, as ideias são divididas e não se pensava – na sua origem enquanto festas – em lucros, e sim em celebração, onde divino e profano se misturavam em perfeita harmonia.
Com o advento da classe burguesa e da concentração da renda nas mãos de poucos, outras formas de diversão foram se perpetuando através do tempo e foram se estabelecendo enquanto festa a partir da determinação do capital e daqueles que tem o poder do dinheiro.
O Fortal, dentro da cidade é um exemplo de como a sociedade Fortalezense se apresenta, a festa acontece desenvolvida dentro de uma hierarquia inacreditável e desigual, existem as categorias para a diversão e para o trabalho, o que determina essa hierarquia é a necessidade de se separar ricos de pobres. Na verdade o Fortal para acontecer reúne todas as categorias, essas se dividem e subdividem retratando o poder aquisitivo dos cidadãos. Existem a título de diversão os blocos, esses são subdivididos, existem uns blocos que são muito caros, existem os caros e existem os baratos; existem as arquibancadas, se você está nas arquibancadas você não pode entrar nos blocos, você fica se divertindo separado por divisões de madeiras dos que estão se divertindo nos blocos, significa que você não tem dinheiro suficiente para se misturar com os que estão com roupas iguais, ou seja, você só faz parte do bloco se seu poder aquisitivo lhe permitir comprar uma roupa igual a daqueles que você virá desfilando na sua frente, aí sim, você – praticamente, mas não teoricamente – será igual a eles. Existem as arenas VIPS, essas arenas não são caras quanto ter um abadá (as roupas iguais que falei), nem tão baratas quanto uma entrada nas arquibancadas, as arenas causam um pouco de mal estar nos que adquirem o abadá, porque quem compra uma entrada na arena vip em algum momento da noite habitará o mesmo ambiente que a pessoa que comprou o abadá estará, quem compra o abadá pode entrar em todas as esferas do ambiente no qual o Fortal acontece, isso significa socialmente “poder” e “poder” dentro de uma sociedade regida pelo capital não está no limite das divisões.
Para além dos blocos, arquibancadas e áreas VIPS, o Fortal agrega outras problemáticas, existem pessoas que trabalham no Fortal, literalmente separando os ricos dos pobres, esses são os cordeiros, eles ficam segurando cordas, de um lado das cordas estão os que conseguiram comprar um abadá, do outro estão os que não conseguiram comprar o abadá, o irônico nesse processo é que os cordeiros empurram os pobres para longe, durante o percurso, gritam, enxortam, como se estivessem acima da riqueza e da pobreza, se agarram ao trabalho de cordeiros como se fossem os gerentes da festa, perdem completamente a noção social de suas posições, a alienação toma de conta das cabeças e assim os cordeiros perdem a noção da gravidade social de sua função na festa, que, diga-se de passagem, não é deles.
Existem também os que habitam a margem dessa festa, os vendedores de cervejas, águas e refrigerantes que ficam espalhados no caminho, nas redondezas da festa, esses, aproveitam o momento para trabalhar, aumentando o grau de diversão dos festeiros, na maioria das vezes são profissionais que atuam em subempregos e aproveitam a oportunidade para aumentar a renda, trabalham durante horas caminhando com isopores pesados nas costas, ou sentados em bancos duros sem conforto nenhum ou proteção para as costas, esses se sentem cada vez mais distantes da possibilidade de adquirir um abadá.
É importante ressaltar que a título de estratificação social a maioria dos componentes do grupo de cordeiros, o grupo das arquibancadas e os trabalhadores vendedores são de cor negra, e a maioria é jovem, para fazer um contraponto a essa discussão Peter Berger diz que:
“... as possibilidades de mobilidade social de um indivíduo são nitidamente determinadas pela localização racial, uma vez que algumas das desvantagens mais prementes desta última são de caráter econômico. Assim a conduta, as idéias e a identidade psicológica de um homem são moldadas pela raça de maneira muito mais decisiva do que pela classe.”
Enfrentamos aqui então um problema de ordem diferente, que é a perpetuação da pobreza e subempregos como específico da raça negra, nessa perspectiva o Fortal se manifesta também como fato social disseminador de um pensamento que perpetua a raça negra como subalterna à classe branca.
Sabemos que uma sociedade democrática teria que proporcionar igualdade de direitos, sabemos também que é utópico pensar em uma sociedade igualitária, esta só seria possível com a morte do capital e acompanhamos o fortalecimento do capital a cada dia, o capital é como uma torneira aberta que derrama com a certeza que não vai cessar água. É preciso então pelo menos estar atentos, entender, definir as situações para esclarecer entendimentos, Berger também fala disso em seu texto,
“... um conceito muito usado em sociologia é o de definição da situação. Assim chamado pelo sociólogo americano W. I. Thomas significa que uma situação social é o que seus participantes crêem que ela seja, em outras palavras, para as finalidades do sociólogo, a realidade é uma questão de definição, é por isso que o sociólogo deve analisar atentamente muitas facetas da conduta humana que em si mesmas são absurdas ou ilusivas."
As manifestações, festejos que fazem parte da cultura do povo brasileiro tiveram ao longo da história uma condição de acontecimento que não condiz com o que se apresenta hoje junto às grandes massas. O Fortal se apresenta como festa segregadora, separatista, promove violência, violação de direitos, massificação de música de péssima qualidade, além de, escravizar pobres em benefício de ricos. As famílias das classes ricas entendem que comprar um abadá para seu filho é educativo, porque assim ele estará separado daqueles que poderiam causar algum mal, é nobre para uma família na cidade de Fortaleza comprar um abadá para o filho se divertir durante quatro noites. No outro lado da discussão é nobre para uma família de pobres saber que o filho está trabalhando como cordeiro no Fortal, separando ricos dos pobres, porque na linguagem do senso comum, separar pessoas tem a ver com “aquisição de poder”.
A discussão sobre a problemática perpassa também outra, que seria a relação de espaço público x espaço privado, pois não podemos esquecer que o Fortal durante muito tempo aconteceu na Beira-mar, o ministério público interveio e determinou que o espaço não poderia ser usado de forma privatizada, determinando assim que o evento planejasse um espaço próprio para o seu desenvolvimento. Preciso ressaltar que foi criado um espaço a Cidade Fortal, esse espaço é usado apenas uma vez no ano, não existe em suas dependências nenhum projeto social que dê retorno à sociedade fortalezense.
Vivemos hoje estratificados, é possível identificar isso através de fatos sociais como o Fortal, mas ele não é o único, nas procissões, nas missas, nos shows em clubes privados, nas escolas, nos hospitais, no mercado que rege a dinâmica sexual da sociedade, em todo lugar nos deparamos com recortes, identificamos facilmente onde podemos estar, o que determina isso é o poder aquisitivo, a linguagem do capital é de fácil acessibilidade, operar dentro dessa linguagem, é trabalho que necessita do recurso dinheiro. O que podemos fazer é estar atento, correr riscos como sugere Berger. Conhecer para correr riscos, essa talvez seja a grande descoberta de amenizar a dor da leitura e da identificação das estratificações sociais.