terça-feira, 25 de março de 2014

O que digo sobre o Sapateado.

Entrevista dada à Revista DANCE Magazine. QUEM FOI (É) SUA GRANDE INSPIRAÇÃO ? POR QUE? Minha primeira e grande inspiração foi e continua sendo a Coreógrafa da Cia. VATÁ Valéria Pinheiro, ela foi a grande revolucionária do sapateado no Brasil e no mundo, foi a primeira brasileira a dançar nos palcoa do coração do sapateado americano que é os EUA, mais especificamente a cidade de NY. Seu estilo único e autoral é algo que revela sua alma inquieta e criadora. O SAPATEADO NO BRASIL APRESENTA HOJE ALGUMA PARTICULARIDADE? SE SIM, QUAL? Sim, muitas, algumas positivas e outras negativas. A particularidade do sapateado brasileiro e que é um específico de nós sapateadores brasileiros é o domínio sobre a música brasileira, isso é bastante particular, os brasileiros conseguem sapatear com muito mais propriedade e domínio dos ritmos, somos um povo dançante, que tem swing na alma, brasilidade na veia, essa possibilidade de ser maleável na aquisição de ritmos acho extremamente positiva, o sapateado é uma dança que propõe e produz alegrias e conversa diretamente com a essência da alma brasileira. Me incomoda um pouco territorializar o sapateado em um campo de competitividade, esse é um dos motivos pelos quais nunca me coloquei enquanto sapateador junto com a Cia. Dos Pés Grandes (Cia. Que dirijo), acho que de alguma forma, a competitividade coloca em evidências outras questões que na maioria das vezes estão aquém do que o sapateado realmente se propõe enquanto arte que tem uma historicidade complexa e de luta. COM A ONDA DOS MUSICAIS O SAPATEADO ESTÁ SE TORNANDO CADA VEZ MAIS POPULAR NO BRASIL? Aqui no Ceará a onda dos musicais ainda está em processo de andamento, existe um movimento forte de pesquisa em algumas academias, essas tentam fazer o melhor, apreendem bastante em cursos e festivais pelo Brasil e também no exterior. Não tenho muita propriedade para falar de musicais porque faço um sapateado extremamente intimista, não me afetam muito os musicais modernos da sociedade contemporânea. Claro que não tem como esquecer a história dos musicais na construção do cinema, eu vi Cantando na chuva ainda criança, ainda hoje me emociono quando assisto, me enche os olhos, meias de seda, um americano em Paris... enfim, tenho uma relação com musicais no âmbito do cinema, em se tratando de teatro, de palco, tenho visto poucos, quando estou em São Paulo ou nos EUA tento ver alguns, não dá pra morrer sem ver CATS por exemplo. Mas um sapateado de cunho apenas espetacular não me interessa muito, me interessa o que o sapateado causa na minha vida, que sentidos e afetos ele produz. ESSES MESMOS MUSICAIS DÃO CONTA DE ABSORVER OS PROFISSIONAIS? O Brasil é um país que comporta um grande número de sapateadores, cidades como São José dos Campos, Rio de Janeiro, e ainda mesmo algumas cidades do interior de Minas Gerais têm sapateador por metro quadrado espalhado nos cantos. Os grandes centros urbanos oferecem maiores oportunidades profissionais para quem deseja essa linha de atuação no sapateado, aqui no Ceará as oportunidades ainda são tímidas, acho que nossas demandas ainda são outras. É dificil falar disso, eu sou um sapateador alternativo, não trabalho em academias, não participo de festivais competitivos e trabalho com pessoas que não têm alto poder aquisitivo, por essas questões me interessam outras coisas na relação com o sapateado, como por exemplo a forma como ele potencializa minhas alegrias e cuida da minha qualidade de vida. COMO É A CENA HOJE FORA DO BRASIL? QUAIS SÃO OS DESTAQUES? A Cena fora do Brasil é muito condicionada aos desejos e olhares de quem analisa de fora. Eu ainda acho que os EUA são a grande potência do sapateado mundial, eles recriam o sapateado em uma rapidez sem limites, os mestres de sapateado americanos continuam sapateando, e confesso que embora a juventude esteja sempre surpreendendo com novos estilos, a tradição aparece e é preservada o tempo inteiro. O espaço dos mestres é legitimado, a maioria dos sapateadores jovens sabem quem foi Buster Brown, Jimmy Slyde, Steve Condos e outros, dessa forma o sapateado se mantém vivo, a essência dele é mantida nos passos e movimentos dos jovens, existe uma ambiência de cumplicidade entre a tradição e o contemporâneo na relação cotidiana do sapateado nos EUA. Atualmente Jason Samuel Smith representa de forma bastante direta a juventude do sapateado americano, posto que durante muito tempo foi do Savion Glover, ambos trabalham com funk e conseguem captar a juventude para um processo de descoberta do sapateado, acho esse movimento fascinante. Gosto muito do Trabalho de Lane Alexander de Chicago, Lane tem uma generosidade nos pés que é fora do comum, faz um sapateado poético, intimista, desafia a virtuose, é sapateado para ver e ouvir, ver a BAM de Lane Alexander sapateando me dá vontade de voar, de chorar, me afeta todos os sentidos, é um sapateado que me faz pensar. Existe sapateado que fecho os olhos e só escuto, existem outros que mechem internamente, comunicam, me interessa muito um sapateado comunicativo no qual eu consiga trocar algo e viver uma relação de mão dupla, um ir e vir. Tenho essa sensação também quando vejo Roxanne Buterfly, Roxanne é pura paixão e desprendimento no palco, sua felicidade é contagiante, o sapateado feito por ela é sofisticado, limpo, mamou em Jimmy Slyde, aprendeu demais com o mestre e divide esses conhecimentos sem apegos ou mesquinharias. COMO VOCÊ OLHA O SAPATEADO HOJE? Acho que o sapateado é uma arte extremamente sofisticada, uma arte que desperta desejos e paixões, me incomoda pensar que o sapateado é uma arte elitista, e me incomoda muito mais quando percebo profissionais que não questionam o elitismo dentro do sapateado. Gosto de pensar o sapateado como um “possível” a todos, sou extremamente feliz com o sapato de sapateado nos pés e desejo que as pessoas pudessem vivenciar essa sensação, penso sempre no momento de meus exercícios de sapateado na criança que está no trânsito em situação de trabalho infantil, na mulher que sofre violência doméstica, na população LGBT que sofre preconceitos, o sapateado me alivia dores da alma. Tenho um entendimento de que o sapateado, a prática dele pode tornar as pessoas mais sensíveis e comunicativas, lamento que no Brasil essa arte esteja ainda dentro de um ciclo de pessoas que podem pagar preços altos pelas aulas nas academias, existe porém uma grande parte da população que nunca terá acesso porque as aulas são caras, o sapato é caro... enfim. Acho que poderíamos estar fazendo muito mais pelo sapateado no Brasil, popularizando-o, possibilitando – o às pessoas que têm dificuldades de acessá-lo devido a problemática da falta de dinheiro. O sapateado em si é uma arte popularizada, existe de fato, sua existência é inquestionável, o que temos que pensar daqui pra frente é a sua difusão, jogá-lo nas escolas, em cursos formativos, em programas de qualidade de vida. Acho que conheço apenas 3 experiências no Brasil que têm no sapateado o motor propulsor de transformação, Luiz Baldjão faz um trabalho lindo com crianças em um morro em São Paulo, Christiane Matallo também proporciona essa experiência a algumas crianças em Campinas e em Araguari o Estúdio A tem jogado excelentes profissionais de sapateado ao metier da classe, porém, continuo achando que poderíamos fazer mais, somos poucos mas somos muitos na multiplicidade. Gostaria que o compromisso do sapateador brasileiro fosse o próprio sapateado e a perpetuação dele como um “possível” e não um compromisso pautado em montagem de coreografias para os grandes festivais competitivos. Acho extremamente importante festivais formativos como o TAP IN RIO de Steven Harper e Adriana Salomão e o INTERNACIONAL de Christiane Matallo como espaços de difusão e formação do sapateado, são momentos de encontros fantásticos, feito e pensado por pessoas fantásticas que agrega valores, diferenças e estilos. Ainda acho que o sapateado precisa ser mais praticado, vivenciado e experienciado, eu desejo um país com mais sapateadores porque eu desejo um país mais alegre, e alegria é também uma forma de revolução. Heber Stalin Fundador, Bailarino, Coreógrafo e Diretor Geral da Cia. Dos Pés Grandes.

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