sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Relato de um pesquisador tímido.

A cidade de Fortaleza é mundialmente conhecida pela beleza exuberante de suas praias, um misto de província e urbe que translucidamente reflete nas ruas as gritantes desigualdades sociais, estas aparecem nos mais diferentes setores do desenrolar da vida, na economia, no poder aquisitivo das pessoas, nas sacolas de supermercados das donas de casa, nas cadeiras na calçada, nas crianças que brincam com os brinquedos mais diversos, em Fortaleza, um pneu velho e uma lata enferrujada brilham aos olhos de uma criança da mesma forma que um brinquedo eletrônico da mais alta tecnologia. Assim como em outras urbes, a cidade e seus esconderijos, tais quais as suas vitrines urbanas, apresentam-se como nichos econômicos, sociais e culturais para o desenrolar da vida. Bares, barracas de praias, praças, calçadas de comércio, esquinas, teatros, cabarés, se configuram como espaços de legitimação da vida cotidiana, esses espaços compõem o desenrolar da vida, espaços de diversão e entretenimento para uns e locais de trabalho para outros. Dessa forma, o local de observação e pesquisa desse trabalho é a cidade de Fortaleza, mais especificamente o centro da cidade entre as ruas Solon Pinheiro e Jaime Benévolo à altura do Colégio Marista, região habitada de forma intensa durante o dia e escassa de pessoas durante a noite, é um espaço cercado por prédios residências, casas e muitos pontos comerciais. Há lixo pelas calçadas, muitas pontas de cigarros, poças dágua, olhando de forma mais focada, é possível identificar fitas coloridas, pedaços de comida, latas de cerveja amassadas, um bilhete de alguém “ fui comprar pão, volto já”, e em uma parede um pouco mais distante, um desenho da folha da maconha com o escrito “legalize já”. Há passantes, transeuntes, curiosos, pessoas que em suas atitudes matreiras e escapulidas se confundem com ratos, num frenético ir e vir, procurando uma forma de habitar o espaço sem a percepção dos que ali tentam a sobrevivência. Odor de urina e fezes se confundem com a essência dos perfumes dos que ali trabalham, o vermelho da boca de batom em choque com o loiro de perucas me transportam para uma cena de filme do cineasta latino Pedro Almodovar, as mínimas roupas, os saltos altos, as bolsas, o cigarro, a atitude corporal, tudo pronto para ser produto, tudo pronto para consumo. Antes de abordar, fui abordado por Carla, uma travesti, garota de programa de 19 anos de idade que trabalha há dois anos no mesmo ponto, esquina da Solon Pinheiro com Bárbara de Alencar. Carla usa peruca loira, tem 1.72 de altura, olhos grandes, usa cílios postiços, não usa tanta maquiagem porque sua pele é macia e fresca, tem dentes perfeitos, traços femininos no rosto e no corpo. O corpo de Carla é bonito, pernas compridas, cintura fina, bumbum redondo, não tem pêlos, seus ombros não são largos. Cheira agradável, é simpática, delicada mas quando necessário se torna violenta “adoro a minha vida, não deixo ninguém tirar” (sic). Vestia mini-saia preta, top azul marinho, usava salto-alto preto, portava uma bolsa pequena, de segurar na mão, dentro da bolsa uma cédula de 20,00, três camisinhas, batom, perfume bem pequeno, uma carteira de cigarro Hilton, a chave de casa e um bisturi “porque às vezes eles não querem pagar” (sic). As amigas de Carla me olharam de forma esquisita, haviam três do outro lado da rua, uma delas morena, usava shorte jeans com as nádegas de fora, top de brilho prata e salto também prata, peruca morena com luzes claras, portava bolsa cinza de corrente prateada, falava com frequência no celular. Sua parceira de esquina era loira, peruca channel, usava calcinha fio-dental e sutian florido, esta não usava bolsa, dobra seu vestido e o pendura no poste de luz para exibir o corpo para os possíveis clientes. Sentada em um batente havia outra também morena de jaqueta preta, aparentemente saia curta, maquiada, peruca longa, estava sem usar o salto, mas o mesmo estava ao seu lado, chorava muito no momento de minha pesquisa, segundo Carla: “ A mãe está doente, em tempo de morrer” (sic). Carla parece ser a mais requisitada do grupo, é também a mais jovem, enquanto observava de longe, de dentro do carro, três abordagens foram feitas à Carla, em uma delas ela entrou no carro e retornou em torno de 20min. Ela é forte, tem personalidade marcante, fala de forma direta, não se incomoda em falar de si mesma, não se envergonha do que faz e diz ser temente a Deus, relata que Deus vai entender e que só faz o que faz porque precisa de dinheiro, não tem mais pai nem mãe, morava com uma tia no interior e era abusada pelo tio e primos desde os 8 anos de idade. Carla não sabe ler nem escrever, mas sabe contar dinheiro e relata que tem vontade de estudar, mas o preconceito é muito grande. A rotina do trabalho das garotas de programa travestis inicia por volta das 20:00h. Dependendo da necessidade começam o trabalho mais cedo, o dia da semana também é determinante, o movimento para elas aos sábados e domingos pode iniciar até mesmo às 18:00h. A maioria delas mora pelo centro, levam o tempo de uma hora ou uma hora e meia para ficarem prontas, o processo de maquiagem é longo, têm que subir as sobrancelhas, passar fita gomada ou fita durex no topo da testa para subir os traços e ficarem mais femininas, muitas camadas de base, depois muitas camadas de pó, depois lápis, rimel, delineador, unhas postiças. Passo seguinte é cuidar do corpo, cremes, depilação, limpeza interna. Depois pentear e tratar a peruca, grampos, fivelas, acessórios, por fim a escolha da roupa. Sobre a roupa Carla fala que gosta de usar vestidos, mas o vestido não atrai clientes, é necessário mostrar bunda e peitos para que os clientes se sintam atraídos, “porque eles vem muitas vezes bêbados, aí eles querem logo é fazer” (sic). Chegando ao ponto de trabalho, se dividem nas esquinas, entre idas e vindas de esquinas pra esquinas há brincadeiras entre elas, dividem cigarros, emprestam batons, camisinhas e as vezes dividem o lanche. Ficam sempre em pé, andando em saltos altos, quando o farol dos carros entram na rua, imediatamente vão mostrando a região das costas para que os clientes possam apreciar e quem sabe pagar um programa. Carla relata que já chegou a fazer mais de 500,00 em uma única noite de trabalho. Não existe hora certa para se finalizar a noite de trabalho de Carla e suas colegas, às vezes trabalham até as 6:00 da manhã, às vezes fazem apenas um programa para garantir o aluguel ou a alimentação da noite ou do dia seguinte. “Porque a gente também tem os nossos problemas, tem dias que eu to com nojo de tudo, até de mim” (sic). Há minimamente companheirismo entre elas, elas riem juntas, brincam, mandam beijinhos, contam piadas, aconselham umas às outras, lembram umas às outras da importância do uso da camisinha, partilham, são cúmplices, “eu ajudo a quem precisar de mim, só não vou ajudar se for pra roubar”. A falta de acessos as políticas públicas por parte de Carla e suas colegas de trabalho se deu desde cedo e se dá ainda hoje devido os preconceitos relacionados à orientação sexual, no caso específico de Carla, a violação de direitos foi marcante, pois era abusada pelo tios e primos após a morte de seus pais, com dificuldades psicológicas de superar a violação, abandonou a escola, a vida em comunidade e perdeu a noção de que somente através de Educação é que ela poderia superar as violações e as negações de seus direitos, não conhece o Conselho Tutelar, não conhece o papel das ONGS, não sabe o que é uma política pública e não sabe qual o papel do assistente social. A alienação de Carla e suas amiagas é bastante notável. Como falar de valores nessa perspectiva? Como achar formas de se falar de políticas públicas e acessos se estes são fragilizados em sua totalidade? Como pensar ações que possam sanar minimamente as carências de direitos de Carla e outras profissionais da rua? Como pensar em juventude frente às ditaduras corruptas e eletivas do neoliberalismo? Como pensar em inclusão na política de saúde, educação, habitação e assistência social para esse segmento da sociedade que fica à margem de todas as realizações político-sociais do mundo contemporâneo? Como fazer a sociedade entender esse segmento para além da culpa? Como estrategar falas que tirem a culpabilização da prostituição dos travestis em detrimento do cerceio dos acessos? s~çao muitas as questões que vão ficando após o encontro com Carla. Acredito que o encontro com Carla foi transformador para nós dois, Carla me encheu de perguntas, quis saber de minha vida pessoal, se eu era casado, se gostava de meninos ou de meninas, me falou que eu era bonito (rsrsrsrsr). Pediu camisinha, do outro lado da rua escutei “Ei Carla tu vai é casar com ele é?”. Dividi com Carla o tempo de uma hora e dez minutos de conversa, durante esse tempo Carla se mostrou muito atenta ao que eu dizia, ao que eu perguntava, ao que eu queria saber, respondia tudo de modo muito direto, ao final me perguntou se eu não queria tirar foto, perguntou se eu voltaria, “quando quiser pode vir.” (sic.). Esse mergulho no campo foi muito importante, pois percebo que há muito o que se entender quando estamos na pesquisa, me senti muito confuso, perdi a noção do campo, não sabia mais, confesso que ainda não sei, se Carla ou se o local de seu trabalho são o meu objeto de pesquisa nesse trabalho, o fato é que a partir do contato com Carla pude mapear meus preconceitos, medos, subjetividades e afetividades, é possível se mapear a demanda de políticas públicas para esse segmento, é possível se mapear demandas também afetivas, são muitas as carências, falamos de algumas eu e Carla, mas muitas outras ficaram subentendidas, escondidas, guardadas para quem sabe em um outro momento aparecerem de forma teimosa. Me despedi de Carla e segui rumo ao carro, nesse trajeto olhei para trás e vi claramente que a dinãmica de trabalho ali instaurada não se modificou. De dentro do carro vi Carla rir com as colegas, reforçar o batom, acender um cigarro e voltar para a esquina da Solon Pinheiro com Bárbara de Alencar, da mesma forma que a encontrei. Vestida de nua, despida de políticas públicas, desejando um futuro melhor. E eu segui. Assim como Carla. Seguimos ao nosso modo Carla e Eu.

Um comentário:

  1. Você Heber.... o que dizer meu querido amigo talentoso, como diz Marilda da questão social : "Multifacetado" é urgente e cheio de inquietações, mas isso é ser HEBER STALIN sempre com um olhar cheio de poesia e criticas a esse sistema cruel a qual somos submetidos. Mas somos utópicos Heber, temos fé e quem sabe um dia tudo muda?
    beijos e um 2014 lindo pra você meu amigo!!

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