terça-feira, 5 de julho de 2016
Obrigado Cia VATÁ
Mãos trêmulas, pernas bambas, suor nas axilas, cegueira, visão turva, demência e instabilidade, algumas sensações atravessadas por mim ao chegar na Caixa Cultural para assistir ao Documentário da Cia. VATÁ. Sensações incitadas por emoções que não conseguirei traduzir em palavras, mas que revelam uma enorme gratidão, amor, respeito e devoção ao legado dessa Cia. que me foi casa (e ainda é) desde os meus primeiros passos em dança, desde que decidi abandonar o sertão central e vir para a cidade grande em busca de realizar o sonho de me tornar artista.
Assistir a trajetória dessa Cia. Me fez olhar para a minha própria trajetória como artista na cidade de Fortaleza, mais do que isso, me fez olhar para a importância legítima da atuação da Cia. VATA ao longo desses anos na cidade de Fortaleza. Constato que uma artista comprometida com o seu fazer rompe as barreiras da língua, do lugar, das geografias impossíveis, dos afetos tristes. Não por ser exótico, mas por ter em suas mãos a incrível capacidade de construir obras que dialogam com o mundo, pois falam de afeto, falam de um lugar, de um afeto ao lugar, de um compromisso com o seu povo e com a sua história.
A dignidade de, como diz nossa saudosa Dona Silton, “seguir o intuito” é algo que exige coragem. Coragem não como ausência do medo, mas como a determinação de acordar todos os dias e inventar possibilidades de existência, e quando não conseguir inventar, tratar de reinvenções, buscá-las em dores, amores, alegrias… driblar as tristezas e se vestir de força… talvez seja isso, seguir o “intuito” talvez seja permanecer no limite da loucura e do desespero, pois ser louco é ser transgressor e o desespero traz transbordamentos, instâncias primordiais para qualquer processo criativo.
Valéria Pinheiro é mundana, ave de arribação, antropofagicamente um Carcará, pois quem teve a honra e o privilégio de trabalhar ao seu lado sabe que ela “pega, mata e come”, Valéria come o outro, se alimenta do outro, gosta de saber como, onde e por quê, tem olhos de menina, jeito de menina, curiosa… abre gavetas, folheia livros, meche em fios, sobe em escadas, pega a vassoura, varre, lava, cozinha… e em toda a nobreza de seus gestos eu vejo dança. Isso a faz um ser tão completo que para gestualizar talvez eu precisasse de centenas, milhares de braços para mostrar o tamanho, simbolicamente.
A Cia. VATA está em festa, muitos fomos, muitos somos, muitos seremos, todos passamos e todos ficamos, VATÁ é água corrente de torneira aberta, rio que corre, não há parede nesse açude, não há fundo nesse poço. Há uma grande porta aberta, sempre a espera do desejo de fazer parte, talvez levemos tempo para entender isso, mas sim “fazer parte, cabe a se deixar fazer parte” e esse entendimento é cabível de vida, mundo, lugar, tamanhos.
Dancei mais de dez anos nessa Cia. que me foi Universidade, lá eu amei, ri, chorei, sofri, aprendi… lutei, caí e me reergui. Fui Cabaçal, fui Ancestral, fui Orixá… suspendi, sambei, sapateei. E esse matulão que me foi ofertado está repleto de boas lembranças, impossível narrar aqui das tantas coisas incríveis vividas, as dores, os amores, os lugares, os países e continentes habitados em nossas andanças, mas impossível também não registrar um agradecimento infinito a essa universidade que me afetou e afeta a vida, o amor, o sexo, o entendimento e principalmente a possibilidade do dançar, a coragem cotidiana, o enfrentamento aos sentimentos esvaziados, aos afetos tristes, aos nãos, a persistência na alegria e na própria persistência. Sim, Valéria e a Cia VATÁ são persistência da persistência, um acontecimento de luta e resistência que devemos nos orgulhar.
Desejemos vida longa à Cia. VATÁ, ao Teatro das Marias, ao sapateado brasileiro, particularmente desejo estar vivo para ir às comemorações dos 30 anos de Cia. VATA no Ceará, e mais uma vez assistir atônito, com vontade de chorar alto (pois baixinho chorei em muitos momentos), vir para casa correndo para deitar na cama e agradecer pelas oportunidades que tive, pelos sonhos que realizei junto, pelas conquistas, pelas viagens que me encheram de possibilidades e descobertas, agradecer principalmente o privilégio de através de Valéria poder descobrir a potência do sapateado e a possibilidade de um sapateado que fale de nosso povo, de nossas casas, de nosso país.
Eu te agradeço Valéria Pinheiro, por ter me feito, por ter me empurrado, por ter segurado a minha mão e me levado para o mundo, eu te agradeço o ensino, a paciência, o olhar amoroso, a permanência, a resistência, o alimento e o abrigo, eu te tenho em mim para todo o sempre, você é a maior curuMÃE do mundo!
Com amor.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
Sobre TCC
Foto de Delfina Rocha, Espetáculo: Caçadores de PIPA da Cia. VATÁ. Direção de Valéria Pinheiro.
O Projeto Ético Político do Serviço Social demanda da categoria de profissionais, estudantes e instituições formativas o compromisso de construção de uma outra sociedade, pautada em direitos assegurados, justiça social, empoderamento e emancipação humana.
As estruturas nas quais se legitimam o PEP são condicionadas pela afronta do capital, mundialização, globalização e a tendência econômica de teor liberal, a livre concorrência se estabelece como ponto precarizador da atuação do assistente social em seus espaços sócio ocupacionais, pois a categoria sofre, como as demais classes trabalhadoras, as refrações de explorações e da livre concorrência.
Nesse processo, as atuações da categoria correm o risco de se fragilizarem e se transformarem em intervenções rápidas, pragmáticas, imediatistas, referenciadas pelo projeto econômico do grande capital, projeto esse que subtrai direitos, exclui o entendimento de classe social e perpetua culturas de violência e a apologia à culpabilidade dos indivíduos. Segundo Maria Lúcia Barroco, podemos chamar esse contexto de neoconservadorismo.
O serviço social, como categoria profissional, tendo como base o código de ética como consequência do PEP, nos incita e fomenta intervenções profissionais pautadas em pesquisas, estudos, estágios, planejamentos, gestão que vão ao encontro do entendimento profundo e generalista das refrações da questão social – matéria-prima do trabalho do assistente social.
Dessa forma, o Projeto de TCC proposto, pretende dar visibilidade e buscar algum entendimento das estratégias de sobrevivência das travestis que trabalham com prostituição no centro da cidade de Fortaleza no período noturno. Parece-me importante para a categoria que esse tema seja abordado pois percebemos claramente que o segmento social investigado é apontado com referências de estigma, preconceitos, abjeções, tais referências reforçam o conservadorismo e tornam importantes as intervenções no âmbito do serviço social dentro das políticas públicas.
Podemos dizer que são seres que não são reconhecidos como legítimos seres humanos devido a grande falta de informação e do entendimento a partir de uma totalidade. Em sua maioria não frequentou a escola, não desenvolveram sociabilidade de forma a lhes garantirem princípios de autonomia e independência posto que o que se apresenta a priori em seus corpos e meios de vida é a diferença.
Assim, o Projeto de TCC buscará mapear histórias de vidas a partir de estratégias de sobrevivência, e com isso, mapear e sugerir pontos para se pensar políticas públicas no âmbito municipal que possam atender demandas específicas e encaminhar projetos que contribuam no reconhecimento do segmento como seres de direitos, visando a emancipação e as garantias que lhes cabem.
Percebo que a discussão no âmbito das políticas para a população LGBTT ainda se insere em uma instância de pouca visibilidade, são inúmeros os casos de assassinatos, em sua maioria, assassinatos com requintes de crueldade, inimagináveis à genericidade humana. A região Nordeste é a região que atualmente mais comete assassinatos às travestis, gays, lésbicas e Fortaleza sofre as consequências de uma política LGBT fragilizada, quase que subsumida no meio de questões que ao olhar do grande empresariado e da máquina pública, que atende demandas do capital, se perdem em pontuais ações de combate a todas as formas de preconceitos, estamos sujeitos a uma Parada da Diversidade e uma coordenadoria de políticas LGBT que apática, mais viola do que atende demandas.
Pensar formas de enfrentamento a manifestações que anulam o outro como legítimo outro nos demanda conhecer, aprofundar pesquisas e entendimentos. Acredito que os assistentes sociais são imprescindíveis nesse contexto, pois está na história da formação da categoria: É necessário estarmos juntos dos movimentos sociais, da classe trabalhadora e de todos aqueles que sofrem as refrações agudizadas da questão social, eis um ponto a mais a ser observado, uma pedra a mais a cruzar no meio do caminho, uma ponte a mais a ser construída, para isso: Sigamos, como nos disse Carlos Drummond de Andrade “De mãos dadas”.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Na ausência do que sentir, eu digo!
Há uma coisa aqui…
Misto de incerteza e medo, presença e ausência. Será loucura?
Há um inacabado de estradas a serem percorridas, porém há chinelos quebrados, sapatos sem cadarços… janelas de cortinas fechadas impedindo a contemplação de um horizonte.
A dor de uma saudade, a dor de um fim, a dor de um “não me importo” é uma dor seca, rabiola de pipa que não sobe. Menino sem camisa, pés descalços… fome.
Existe um incentivo danado à coragem quando medo e incertezas em mim se instalam, através do medo me enxergo e corro a enfrentar o que venha. Através da incerteza eu reflito, autoanaliso, redescubro e crio formas novas de caminhar, estradas densas e por isso convidativas, facão em punho a arregaçar matas virgens, cheirosas, olhos vendados, tato e olfato apurados.
A vida se mostra em cada canto de experiência vivida, antes dos cantos existe o anúncio, em forma de lágrima ou de riso o anúncio aponta, informa, dirige, segura em minha mão e me incentiva a atirar-me contra a espada, pular de precipícios, peito aberto, poucos cabelos ao vento, corpo pesa. Eu nunca recuo.
Boca seca de hoje é a mesma boca cheia de ontem… beijos secam, palavras secam, comidas secam, água seca(?).
Buraco no peito, olhos de zumbi, um nada nas mãos e uma vontade indescritível de um recomeço sem dor, uma outra cidade que não essa e nem aquela, um outro quarto que não aquele hotel, um outro mundo que não aquele que eu pensei ser meu também, sim, eu pensei! Um barulho que não aquele de seu silêncio. Não, frio nunca mais.
Teu corpo doce e pequeno, tua mão atrevida entre minhas pernas, boca que me cheira, me lambe, me enlouquece. Há outros caminhos? Há outras paragens? Ultima olhada em tuas fotos, última mão em meu desejo, uma loucura tão sã se estabelece agora. Suspiro (pausa).
Água, beber água, trancar a porta do quarto, deitar na cama, levantar da cama, ligar a TV, abrir a janela (mas por hoje não há horizonte) só cortinas. Água, água, água, água.
Cigarro não mais, hotel não mais, moda não mais, dentes não mais, ser estrangeiro não mais, incêndio interno, difícil de apagar.
Um dia vem atrás do outro e as saudades se fantasiam de carnavais e posts de facebook, mensagens indiretas e frágeis de seres também fragilizados, cinismo explícito, ausência de coragem, sensatez em aridez. Foto em preto e branco.
Eu tenho um compromisso com a vida, foi com ela o pacto feito pelo cultivo à alegria, mas por hoje eu o quebro. Por hoje eu me dispo da roupa de guerrilheiro para mostrar um pouco que sou também constituído de fragilidades e inseguranças, mas informo: POR HOJE, SÓ POR HOJE.
Porque quando os caminhos mudam a gente tem o direito a tentativa de aprender a andar de uma outra forma, de construir uma outra maneira de andar que não aquela em que tentei segurar a tua mão, como aquela que me fez tímido te roubar um beijo entre carros, gentes, lojas e outros amantes, como aquela que me fez economizar dinheiro para te comprar flores em um dia de chuva, pés enlameados, roupas molhadas mas as flores intactas. Teu riso lindo.
Eu não te escrevo, eu não te escrevi, eu não vou chorar. Eu rio ao lembrar de teu riso também tímido, eu rio ao lembrar de teu corpo faceiro provocando o meu, eu rio por te ouvir tanto falar e só pensar em te ter em meus braços, eu rio de tanto que esperamos e nos debruçamos um ao outro em histórias, estórias, danças e até lágrimas, bar fulerage, cidade suja, fumaça, muita fumaça… fumaça me traz a incerteza do que se vê, porque embaça, confunde, irrita os olhos e provoca o desejo de ver de forma mais límpida, há fumaça entre nós, sempre houve.
Nós somos o que sobrou da luta entre distância e proximidade, somos um não lugar, pura abstração somos um ao outro, um retrato, um número, uma memória, mas somos. Sim nós somos.
Dias atrás sonhei com você, você chegava em uma bolha, algo como redoma, depois você se transformou em sabonete molhado, metáfora mais do que lógica para se falar de nossa estória, porque em mim sempre houve a tentativa de te segurar e você sempre foi uma coisa molhada e escorregadia, água corrente.
Nobre, muito nobre não ser água parada, Manoel de Barros já diz que “liberdade caça jeito” e embora eu nunca te tenha sido prisão, a minha liberdade te causa medo do aprisionamento (penso eu!)
Fumaça, fumaça, fumaça… que a limpidez nos chegue, que permaneçamos a partir de amanhã alegres, sim, amanhã, porque hoje eu tenho o direito de ser triste, SO POR HOJE, sim eu tenho esse direito. Ah… estou ouvindo o Hélio Flanders cantando “Me acalmo danando” de Ângela Rorô, você já percebeu como essa música é linda?
domingo, 25 de outubro de 2015
"ESCREVO-TE ESTAS MAL TRAÇADAS LINHAS..."
Estou há alguns dias movido pelo desejo de manifestar escrita. Essa coisa de escrever sempre vem com um misto de incerteza, medo ou retração, como algo que depois de solto no mundo não mais se prende, não mais se apaga, talvez até se ressiguinifique, mas é lançado, grafa tempo e espaço, vira memória, e depois de virar memória (... calma...talvez não vire memória, refletindo mais um pouco desconfio que não é uma questão de virar memória, porque mesmo antes de sair de mãos e mentes, já é memória.) Não há mais como construir o caminho de volta.
Li recentemente, muito recentemente a biografia de minha ex professora de balé clássico Wilemara Barros.
(Aqui, nesse inicio de escrita soltei o computador, deitei, bebi dois copos de água, contei meus livros, achei que fosse bobagem escrever, desisti.)
Escrever é um ato de partilha, coragem de bicho. Escrever sobre alguém, sobre a história de vida de alguém é cavar espaços para reconhecer o que se é enxergando-se no outro.
Refletindo um pouco mais, retomei as mãos o computador, tirei toda a roupa, deitei na cama, pus Maria Callas na vitrola e cuidadosamente fui movimentando me por essas letras que na rapidez da digitação parecia me a movimentação de um balé, um balé de dedos. Nada mais propícios a imagem e a sensação ja que é de dança que se escreve, de quem faz danca, de quem é danca.
É difícil definir a razão dessa escrita, mas sei que é preciso escrever, pois essa leitura me inquietou e me mecheu, como água quente jogada em bicho que estava dormindo, como buraco que se abre sobre pés, como casa que cai, como vida que se acaba inesperadamente.
Wilemara Barros é uma mulher incrível (me perdoem se parece piegas ou lugar comum a expressão através da qual me refiro a pessoa de Wilemara Barros), mas ao ler a Biografia de Wilemara, a sensação de incredibilidade do ser humano que a habita me salta a alma, me enebria os sentidos e me treme mãos. Garganta seca, nenhuma saliva, nada de cuspe.
Conhecer essa mulher fantástica, bailarina de profissão, menina de periferia, ousada, corajosa, não é tarefa muito fácil, pois Wilemara é tímida, fala pouco, observa muito, seu conhecer se confunde com o seu ser, ambos são imensos, como céu. Me sinto nuvem, espaçada... se adjetivo Wilemara como céu, adjetivo a todos que foram e que são seus alunos: nuvens...pois enquanto professora Wila é abarque, possibilidade, faz chover, molha...com Wila eu tambem chovi, ainda que como sereno leve, garoa, gotículas.
Lembro com muita nitidez de Wila nos corredores do Theatro José de Alencar na época do Colegio de Danca do Ceará, fui aluno da escolinha de rapazes do Professor Flávio Sampaio que funcionava naquela instituição. A escolinha de Flávio proporcionava aulas de balé clássico para rapazes que tinham o desejo de aprender a técnica clássica. As aulas iniciavam pontualmente as sete da matina, finalizavam por volta das nove, momento em que iniciavam as aulas dos alunos do Colégio de Dança do Ceará, foi nessa época que vi Wila pela primeira vez, foi nessa época também que pela primeira vez tive o privilégio de ser aluno da Diva da dança cearense (não confundamos a Diva da dança Wilemara Barros com as divas do rebolado da world music) fato que me deixou tocado, apaixonado pela danca classica, embora sempre tenha tido a noção de que aquela tecnica nunca seria por mim desenvolvida a contento, pois nunca tive fisico privilegiado, sempre fui um jogador de futebol em se tratando de alongamento e outras possibilidades que a tecnica classica exige. Mas, ainda assim, Wilemara me disse ser possível dançar e através dela desenvolvi muito apreço e paixão por aulas de balé clássico.
Mas não é sobre isso que eu deveria estar aqui escrevendo, dessa fase o que me ficou na memória foi mesmo a figura ímpar de Wilemara Barros, o cabelo, a cor, os óculos, os saltos, os mini shorts, as mini saias, as bolsas, o andar, o olhar... e o silêncio... Sim, Wila sempre foi muito silenciosa, coisa de quem sabe demais, coisa de quem tem asas, coisa de quem é céu.
Fui coreografado por Wila, música de Tom Jobim, academia Bailart. Nunca pensei que teria em algum momento, por menor que fosse, a confiança dessa magnífica professora em executar alguns passos por ela criados, passos ousados para um sapateador desastrado. Havia um chapéu, um paletó, uma ideia de espaço na cabeça dela, no meio disso tudo havia uma generosa injeção de coragem e incentivo vindo de sua parte. Dessa época, foi essa injeção e construção do possível para uma danca em mim, o que me fez ter coragem de dizer para mim mesmo que eu era uma pessoa de dança. Isso devo a Wila. Quando falo de dança, falo da possibilidade de uma dança outra sem os amados sapatos de sapateado nos pés, que me foram calçado por Valeria Pinheiro.
Ao ler a Biografia, revivi, ao falar do DEVIR de Fauller na conclusão do Colégio de Dança do Ceará, reconheci me por muitas vezes acompanhando aquela trajetória, pois estava la, ao lado dos grandes, dançando como bailarino convidado no trabalho de Valéria Pinheiro, dividi as coxias com Wila.
Pausa, visto cueca, procuro o programa da noite da apresentação, sei que era amarelo... não recordo o nome do programa. Busco, rebusco... não encontro. Volto para a cama e olho o computador... "jamais enviarei isso para Wila".
"Por que Wila é sempre tão doce, atenciosa e delicada comigo? Mas Heber, não é só com você, Wila é assim!" Meus pensamentos. Água, mais água, café, pão, biscoitinhos doces...grito do quarto após me trancar novamente e tirar toda a roupa :"mãe, a senhora pode me fazer um chá?"
Tenho a ingênua sensação de que para escrever sobre Wila, a nudez seria uma porta de acesso, porque se Wila é céu, se sou nuvem, se me molho, se Wila me choveu, Wila me deu nudez, me fez tirar roupa e me fez trocar de roupas.
Retornando - agora de bruços no chão de madeira do meu quarto, excitado -
Ano passado recebi uma mensagem do marido de Wila, meu querido Fauller, pessoa que tenho extrema admiração, que me e uma referência, que me é modelo, que me excita a criar, que me desafia, que me instiga, que me arrebenta. Na mensagem me convida para uma noite de performances em homenagem a Wilemara Barros pelos seus 50 anos de idade no Palco Principal do TJA.
No momento achei que era brincadeira, como eu, um sapateador desajeitado, sem muitas possibilidades físicas, iria me apresentar para homenagear a maior bailarina classica de Fortaleza? Não levei muito a sério, até sorri depois de desligar o computador, e naquela noite muito aflito eu não consegui dormir direito. Comecei a realizar que realmente o convite havia sido feito a mim e que eu teria que fazer algo, pois era da Wi lemara Barros que se tratava. Dor de barriga, suor noturno, medo, "o que as pessoas vão dizer?" Por que eu?
Organizei minha performance como pequenos bilhetes, coisas que eu gostaria de ter dito a Wila ha muitos anos, desde a época que foi minha professora de balé na escola de rapazes, havia coisas a serem ditas desde a época em que havia me coreografado na academia Bailart, desde a época em que nos encontramos pelos corredores da Boite Divine, desde a época em que foi minha professora na primeira turma do Curso Técnico em Dança... eu sempre tive muito o que dizer a Wila, porque sempre fui muito grato aos olhares, aos entendimentos, aos incentivos que dela vinham não só a mim, mas a todos os que juntos de mim sonhavam em ser bailarinos.
Ler a biografia de Wilemara, me fez rever a própria vida, minha trajetória pessoal, artística, sexual e hominidea.
Finalizei a leitura aos prantos, olhando as fotos, com as mãos tremendo, soluços me invadindo a garganta, boca aberta no travesseiro, mãos geladas...
E me calo, com a certeza e a dívida de muitos dizeres a Wilemara Barros, o maior deles é o de muito obrigado, obrigado por ter sido minha professora, por ter sido minha coreógrafa, por ter me injetado a possibilidade de uma nova danca, por ser tão calada e saber tanto, por ser corajosa, por ter corrido em busca de todo sim que lhe entregaram com o um não.
Wi lemara Barros é a própria dança, não faz dança porque é dança. A você minha querida Wila, muitos passos, muita vida, muita música, que minha dança, que também é tua, possa servir a ti sempre que me couber, enquanto tu fores alcançável.
Com amor, carinho e gratidão.
Heber Stalin
terça-feira, 25 de março de 2014
Modernidade e Pobreza: Algumas simples, bem simples considerações.
Fortaleza é uma cidade conhecida e reconhecida como uma das cidades mais perigosas do mundo, há uma esteria urgente de criminalização às pessoas pobres, que geralmente são estigmatizadas como os motores da violência urbana, quando na verdade o ato de gerir violência perpassa também, e se duvidar em proporção semelhante, a classe dominante.
O pensamento de que somente os pobres cometem crimes e violência seria no mínimo inocente e ingênuo, além de que, esse pensamento é um reforço às afirmativas de que os pobres é que são a escória do mundo. Dessa forma é preciso se levar em consideração o real processo que faz com que estejamos divididos em duas classes, a classe operária e a classe burguesa. Não há tempo suficiente para traçarmos uma discussão aprofundada sobre a construção histórica e social dessa relação, mas deixaremos algumas pistas para afirmar um lugar mínimo de um pensamento que dialoga com os processos de desalienação.
O discurso sobre modernidade, tão atual no mundo contemporâneo, faz pensar que todas as coisas são acessíveis para todas as pessoas, quando na verdade o que se estabelece como modernidade é ainda uma forma de se apartar pessoas a partir do seu poder de consumo, nada de novidade se levarmos em consideração o que acompanhamos dentro do desenvolvimento do capitalismo de sua gênese até os dias atuais observando as desiguais oportunidades impostas pelo sistema.
Karl Marx em seu texto Valor, Trabalho e mais-valia de 1865, já informava que:
“...para poder manter-se e reproduzir, para perpetuar a sua existência física, a classe operária precisa obter os artigos de primeira necessidade, absolutamente indispensáveis à vida e à sua multiplicação. O valor desses meios de subsistência indispensáveis constitui, pois, o limite mínimo do valor do trabalho.” (Mark,1865).
Observa-se que em se tratando de consumo e trabalho há uma disparidade de alcance bastante considerável, pois quanto mais o homem (classe operária) trabalha, mais o homem (capitalista) se beneficia, o lucro da classe capitalista, é composto exatamente do que falta à classe operária.
Dessa forma, a necessidade do ter, além de ser uma constante na vida do trabalhador enquanto ser social, é também uma eterna busca, é sede que não há água que sacie.
Essa busca incessante pelo atendimento das necessidades humanas traz consigo estratégias que vão além das relações cordias de aquisição e estão imbricadas nessa busca uma série de outras questões, uma discussão sobre identidade, mídia e cultura por exemplo nos dariam minimamente uma base para entendermos os caminhos que estrategicamente usamos para o cumprimento de nossas necessidades.
Um ponto bastante “legítimo” para se entender os níveis de modernidade tem a ver diretamente com a ascensão de um país dentro do cenário mundial de consumo e status. O Brasil se espreme, se sujeita a fazer parte de uma lógica competitiva que maltrata seus citadinos os colocando em situações de extrema pobreza e miséria que nem de longe dialogam com um real sentido do termo modernidade. Famílias em situação de extrema pobreza, pessoas morrendo de sede por falta de vontade política de se amenizar os problemas trazidos com as secas do Nordeste, assaltos, assassinatos e serviços públicos precarizados e sucateados; nem de longe esses quisitos dialogam com um conceito de modernidade que leve em consideração o bem-estar de pessoas, sem falar no desregrado sucateamento do patrimônio público das cidades, demolições, desocupações e total desrespeito ao povo brasileiro em detrimento de grandes eventos como a Copa do mundo, Olimpíadas, Copa das confederações dentre outros.
Não podemos ser complacentes com a assinatura de uma modernidade que desapropria pessoas de suas histórias de vida, de suas cidades, de seus nichos de convivência, essa forma de se legitimar a modernidade não é trangressora e sim regressora, pois assassina vidas, árvores, pessoas, causa doenças de várias ordens, propõe a loucura, o desespero, a tristeza, a angústia, a incerteza, um amanhã incerto.
O que está implicito nesse discurso de modernidade é um processo de globalização que em hipótese nenhuma é benéfico ao Brasil, pois o jogo de troca e lucro a título de globalização é sempre injusta. O Brasil não é uma grande potência financeira, seria ingênuo pensar que nessa perspectiva há equidade e igualdade, há sempre um maior que fala mais alto, há sempre a força do dinheiro que dita as regras, como disse o poeta bahiano, o que há no fim das contas é “A força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Seguindo a lógica do capital, quem tem mais manda mais, quem tem menos não manda, tenta negociar, mas no fim das contas: Obedece.
Stuart Hall em seu livro “A Identidade cultural na pós - modernidade” faz uma discussão sobre as problemáticas do mundo contemporâneo e dentre outros importantes pontos traça um panorama do que se imbrica na discussão sobre modernidade e identidades na atualidade, em Hall:
“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar “livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de supermercado cultural” (HALL, pá. 75).
Quando Hall aborda na passagem do texto que a escolha nos parece uma possibilidade a todos, informa que aparentemente o mundo vive em plena igualdade. O que acontece na realidade é que as escolhas são determinadas por fatores sociais e históricos, não dá para acreditar que o mundo oferece oportunidades iguais a todos, essa é a máxima do sistema neoliberal, a lei do mercado livre, que nos sufoca e nos é perverso.
O que queremos dizer é que da mesma forma que o Brasil entra em negociações que o deixam em situações subalternas frente a outras potências mundias ( Japão e EUA), as pessoas também estão sempre vivendo essa relação no seu cotidiano, de exploração, de opções injustas. Sabemos claramente que uma política publica de educação por exemplo não coloca as pessoas em nível de competição igual, ou ainda somos ingênuos de pensar que um aluno da rede pública tem as mesmas possibilidades que um aluno da rede privada? Em se tratando de educação básica isso é um dissenso. É discurso de Liberais.
Ainda pensando sobre a modernidade e sua relação com o aumento da pobreza, é imprescindível que estejamos atentos para as questões relacionadas à política de transferência de renda do governo federal. Há uma histeria cega e louca que criminaliza a política de transferência de renda em detrimento da afirmativa de que os benefícios têm incitado uma preguiça ao trabalho. Essa afirmativa é perigosa, pois os benefícios de transferencia de renda – ainda que tenham inúmeros problemas – foram uma maneira de se retirar milhões de pessoas das situações de extrema pobreza e trabalho escravo assim como reavivar possibilidades inerentes à auto-estima.
A Socióloga Amélia Cohn, foi assessora de projetos sociais do Governo Lula e foi uma das responsáveis por estruturar o Programa Bolsa Família junto ao BID. Durante alguns anos trabalhando ao lado do então presidente, recebia cartas de beneficiários do PBF, nas cartas os beneficiários relatavam e agradeciam o benefício, as cartas eram direcionadas ao Presidente. Amélia relata:
“Em 2007, realizei um estudo para a Secretaria Nacional de Renda para a Cidadania sobre o Bolsa Família – comentamos sobre cartas, mensagens, recados e falas que ouvimos dos beneficiários. Uma delas era particularmente para Rosani: Uma mulher que lhe havia dito que com os 2,00 que haviam sobrado depois de fazer o rancho (as compras todas do mercado) com o dinheiro que havia recebido, ela havia podido comprar um batom, coisa que há muito tempo era seu desejo. E que isso era para ela uma grande felicidade. Nós (claro que não simplesmente por sermos mulheres) entendíamos muito bem a felicidade de nossa companheira, pelo lado da sua auto-estima; mas também estávamos plenamente conscientes de que da parte da opinião pública, nada mais condenável do que esse “gasto”. Para muitos, demasiados mesmo, essa dimensão da auto-estima, que para nós era inquestionávelmente intrínseca à cidadania e, por extensão, à democracia, é absolutamente invisível, ou mesmo inexistente.” (COHN, 2012)
A modernida aos olhos da classe burguesa é uma inerente aos que consomem, essa forma de dialogar com o conceito de modernidade exclui a classe pobre e estigmatiza os desejos dessa mesma classe de se alcançar determinadas possibilidades importantes para a sua existência. Assim o discurso punitivo ao PBF e outros benefícios deve ser mediado, ainda que existam lacunas que a organização do benefício não conseguem cumprir.
É bastante recorrente na fala dos que criticam o PBF a máxima de que as pessoas que o recebem “não trabalham porque não querem”, esse pensamento é alienado, pois não leva em consideração a realidade em sua totalidade observando as condições injustas de oportunidades na disputa pelo mercado de trabalho, segundo Cohn:
“E o importante é que, embora vital para a sua sobrevivência, para essas pessoas com inserção precária no mercado de trabalho, ou com possibilidadesprecaríssimas de acesso à renda, essa fonte de renda não configura, ao contráriuo do que muitos pensam, uma escolha ao não trabalho.. Apresenta-se, sim, como uma alternativa fundamental frente à inexistência do trabalho como fonte de segurança da satisfação de suas necessidades básicas e de suas famílias.” (COHN. 2012).
Reforçamos que é necessário dismistificar o Bolsa Família como um sustento de vagabundos, pois essa maneira de enxergar o programa é também uma maneira de culpabilizar as pessoas por serem pobres quando o que acontece de fato está grafado na história do país desde seu descobrimento, uma história marcada pela injustiça social, oligarquias, coronelismo, ditaduras religiosas que aumentam as desigualdades, e afunilam uma ascenção social aos que têm mais oportunidades.
Não dá para discorrer sobre a relação modernidade e pobreza sem perpassar por questões relacionadas ao Programa Bolsa Família e a atual conjuntura da cidade de Fortaleza frente às pressões impostas pelo evento Copa do Mundo. O que se percebe é que há cada vez mais o aumento da classe pobre, a grosso modo: quem é rico cada vez fica mais rico e quem é pobre cada vez mais pobre, o ciclo da pobreza aumenta na mesma proporção em que o ciclo da riqueza diminui.
Entendendo da importância dessa discussão para uma formação comprometida com as mazelas da questão social, nos ocupamos em nos deter sobre o imbricamento dessas questões em nossa cidade, claro que de forma bastante tímida, pois a discussão sobre a relação modernidade e pobreza é inesgotável, são muitos autores, muitos pontos de vista e muitas correntes filosóficas que a abordam de formas diversas.
Sabemos que o curso de serviço social é hegemonicamente Marxista e acreditamos nas teorias de Marx a partir de seu método de observação crítico-dialético que é necessário entender a realidade através de uma leitura de conjuntura que leve em consideração o ser social em sua historicidade, essa leitura foi o nosso ponto de partida para o desenvolvimento do trabalho.
Entendemos porém que para além da classificação de classes e desenvolvimento do capitalismo, o autor não viveu tempo suficiente para traçar discussões relacionadas a determinados temas, viveu em uma época na qual não existiam recursos tecnológicos, e-mails, computadores e a modernidade se estabelecia de uma outra forma.
É no âmbito da não negação dos escritos e na totalidade do pensamento de Marx , na abertura subjetiva a leitura de autores como Hall e Bauman que pretendemos ampliar a discussão sobre o tema sugerido e nos propomos a dialogar sobre os conceitos de modernidade e pobreza.
Para isso, nos debruçamos sobre a cidade, pondo em choque elementos que a partir do processo de transnacionalização do capital se legitimam na cidade causando um verdadeiro caos no desenrolar de seu cotidiano.
O recurso escolhido foi a fotografia, pois essa estratégia chega de forma direta e impactante sendo uma ótima alavanca para se proporcionar o debate.
Foram fotografadas as redondezas do Castelão, que é hoje o alvo de maior especulação imobiliária da cidade, uma casa simples de dois quartos, durante o período em que a copa acontecerá, será alugada por até 10,000,00.
As reformas do estádio estão suprimindo a classe pobre que vive nos arredores, trazendo problemas relacionados ao saneamento básico, demolições, remoções e sem falar nas catástrofes de deslizamentos nos períodos de chuvas.
O metrô da cidade também será abordado, mostrando as obras e o mau funcionamento, causando transtornos e em alguns casos complicando mais ainda o deslocamento outrora feito de ônibus.
A Seca também será mostrada nas fotos de crianças que vivem nos interiores e que são cerceadas do direito à alimentação e uma vida saudável, muitas delas sendo sujeitas à situações de trabalho infantil, similar ao que acontece na urbe Fortaleza.
A intenção primeira é ampliar o debate sobre a relação pobreza e modernidade e fazer refletir o posicionamento ético e político da formação e do profissional que estará em breve atuando nessas ambiências
Concluimos com esse trabalho que é urgente uma discussão aprofundada sobre a cidade, sobre as pessoas, sobre o capital e estratégias de enfrentamento. É bastante doloroso nos perceber em um momento como esse (copa do mundo e extrema “modernização”) de mãos atadas, pois o desejo do povo não é o mesmo desejo do Estado.
O que nos fica é a certeza de que nós, enquanto futuros asistentes sociais, teremos um trabalho grande frente ao caos que o sistema impõe, especificamente no caso de Fortaleza, pegaremos uma cidade cheia de contas a pagar, o preço de sediar uma Copa do Mundo é um preço alto, a inflação voltará com tudo, o desemprego, a miséria se estabelecerá ainda de forma mais agravante. È preciso ter claro que se hoje está ruim, após a copa estará pior.
Dessa forma tecemos nossos agradecimentos ao Professor Renato Ângelo por nos ter colocado de frente a uma discussão tão necessária para a cidade, acreditamos que metodologias de ensino que colocam o aluno face a face com o seu futuro campo de trabalho são disciplinas marcantes e inesquecíveis. E que nunca nos falte o sentimento de rebeldia e o desejo de revolução.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro – Zahar 2001.
COHN, Amélia. Cartas ao Presidente Lula – Bolsa Família e Direitos Sociais. Rio de Janeiro – Pensamento brasileiro 2012.
MARX, Karl 1818 - 1883. O leitor de Marx. Organização de José Paulo Netto. Rio de Janeiro. Civilização brasileira 2012.
VELOSO, Caetano. In Sampa. São Paulo 1978.
O que digo sobre o Sapateado.





sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Relato de um pesquisador tímido.
A cidade de Fortaleza é mundialmente conhecida pela beleza exuberante de suas praias, um misto de província e urbe que translucidamente reflete nas ruas as gritantes desigualdades sociais, estas aparecem nos mais diferentes setores do desenrolar da vida, na economia, no poder aquisitivo das pessoas, nas sacolas de supermercados das donas de casa, nas cadeiras na calçada, nas crianças que brincam com os brinquedos mais diversos, em Fortaleza, um pneu velho e uma lata enferrujada brilham aos olhos de uma criança da mesma forma que um brinquedo eletrônico da mais alta tecnologia.
Assim como em outras urbes, a cidade e seus esconderijos, tais quais as suas vitrines urbanas, apresentam-se como nichos econômicos, sociais e culturais para o desenrolar da vida. Bares, barracas de praias, praças, calçadas de comércio, esquinas, teatros, cabarés, se configuram como espaços de legitimação da vida cotidiana, esses espaços compõem o desenrolar da vida, espaços de diversão e entretenimento para uns e locais de trabalho para outros.
Dessa forma, o local de observação e pesquisa desse trabalho é a cidade de Fortaleza, mais especificamente o centro da cidade entre as ruas Solon Pinheiro e Jaime Benévolo à altura do Colégio Marista, região habitada de forma intensa durante o dia e escassa de pessoas durante a noite, é um espaço cercado por prédios residências, casas e muitos pontos comerciais.
Há lixo pelas calçadas, muitas pontas de cigarros, poças dágua, olhando de forma mais focada, é possível identificar fitas coloridas, pedaços de comida, latas de cerveja amassadas, um bilhete de alguém “ fui comprar pão, volto já”, e em uma parede um pouco mais distante, um desenho da folha da maconha com o escrito “legalize já”. Há passantes, transeuntes, curiosos, pessoas que em suas atitudes matreiras e escapulidas se confundem com ratos, num frenético ir e vir, procurando uma forma de habitar o espaço sem a percepção dos que ali tentam a sobrevivência.
Odor de urina e fezes se confundem com a essência dos perfumes dos que ali trabalham, o vermelho da boca de batom em choque com o loiro de perucas me transportam para uma cena de filme do cineasta latino Pedro Almodovar, as mínimas roupas, os saltos altos, as bolsas, o cigarro, a atitude corporal, tudo pronto para ser produto, tudo pronto para consumo.
Antes de abordar, fui abordado por Carla, uma travesti, garota de programa de 19 anos de idade que trabalha há dois anos no mesmo ponto, esquina da Solon Pinheiro com Bárbara de Alencar.
Carla usa peruca loira, tem 1.72 de altura, olhos grandes, usa cílios postiços, não usa tanta maquiagem porque sua pele é macia e fresca, tem dentes perfeitos, traços femininos no rosto e no corpo. O corpo de Carla é bonito, pernas compridas, cintura fina, bumbum redondo, não tem pêlos, seus ombros não são largos. Cheira agradável, é simpática, delicada mas quando necessário se torna violenta “adoro a minha vida, não deixo ninguém tirar” (sic).
Vestia mini-saia preta, top azul marinho, usava salto-alto preto, portava uma bolsa pequena, de segurar na mão, dentro da bolsa uma cédula de 20,00, três camisinhas, batom, perfume bem pequeno, uma carteira de cigarro Hilton, a chave de casa e um bisturi “porque às vezes eles não querem pagar” (sic).
As amigas de Carla me olharam de forma esquisita, haviam três do outro lado da rua, uma delas morena, usava shorte jeans com as nádegas de fora, top de brilho prata e salto também prata, peruca morena com luzes claras, portava bolsa cinza de corrente prateada, falava com frequência no celular. Sua parceira de esquina era loira, peruca channel, usava calcinha fio-dental e sutian florido, esta não usava bolsa, dobra seu vestido e o pendura no poste de luz para exibir o corpo para os possíveis clientes. Sentada em um batente havia outra também morena de jaqueta preta, aparentemente saia curta, maquiada, peruca longa, estava sem usar o salto, mas o mesmo estava ao seu lado, chorava muito no momento de minha pesquisa, segundo Carla: “ A mãe está doente, em tempo de morrer” (sic).
Carla parece ser a mais requisitada do grupo, é também a mais jovem, enquanto observava de longe, de dentro do carro, três abordagens foram feitas à Carla, em uma delas ela entrou no carro e retornou em torno de 20min.
Ela é forte, tem personalidade marcante, fala de forma direta, não se incomoda em falar de si mesma, não se envergonha do que faz e diz ser temente a Deus, relata que Deus vai entender e que só faz o que faz porque precisa de dinheiro, não tem mais pai nem mãe, morava com uma tia no interior e era abusada pelo tio e primos desde os 8 anos de idade. Carla não sabe ler nem escrever, mas sabe contar dinheiro e relata que tem vontade de estudar, mas o preconceito é muito grande.
A rotina do trabalho das garotas de programa travestis inicia por volta das 20:00h. Dependendo da necessidade começam o trabalho mais cedo, o dia da semana também é determinante, o movimento para elas aos sábados e domingos pode iniciar até mesmo às 18:00h.
A maioria delas mora pelo centro, levam o tempo de uma hora ou uma hora e meia para ficarem prontas, o processo de maquiagem é longo, têm que subir as sobrancelhas, passar fita gomada ou fita durex no topo da testa para subir os traços e ficarem mais femininas, muitas camadas de base, depois muitas camadas de pó, depois lápis, rimel, delineador, unhas postiças. Passo seguinte é cuidar do corpo, cremes, depilação, limpeza interna. Depois pentear e tratar a peruca, grampos, fivelas, acessórios, por fim a escolha da roupa.
Sobre a roupa Carla fala que gosta de usar vestidos, mas o vestido não atrai clientes, é necessário mostrar bunda e peitos para que os clientes se sintam atraídos, “porque eles vem muitas vezes bêbados, aí eles querem logo é fazer” (sic).
Chegando ao ponto de trabalho, se dividem nas esquinas, entre idas e vindas de esquinas pra esquinas há brincadeiras entre elas, dividem cigarros, emprestam batons, camisinhas e as vezes dividem o lanche.
Ficam sempre em pé, andando em saltos altos, quando o farol dos carros entram na rua, imediatamente vão mostrando a região das costas para que os clientes possam apreciar e quem sabe pagar um programa. Carla relata que já chegou a fazer mais de 500,00 em uma única noite de trabalho. Não existe hora certa para se finalizar a noite de trabalho de Carla e suas colegas, às vezes trabalham até as 6:00 da manhã, às vezes fazem apenas um programa para garantir o aluguel ou a alimentação da noite ou do dia seguinte. “Porque a gente também tem os nossos problemas, tem dias que eu to com nojo de tudo, até de mim” (sic).
Há minimamente companheirismo entre elas, elas riem juntas, brincam, mandam beijinhos, contam piadas, aconselham umas às outras, lembram umas às outras da importância do uso da camisinha, partilham, são cúmplices, “eu ajudo a quem precisar de mim, só não vou ajudar se for pra roubar”.
A falta de acessos as políticas públicas por parte de Carla e suas colegas de trabalho se deu desde cedo e se dá ainda hoje devido os preconceitos relacionados à orientação sexual, no caso específico de Carla, a violação de direitos foi marcante, pois era abusada pelo tios e primos após a morte de seus pais, com dificuldades psicológicas de superar a violação, abandonou a escola, a vida em comunidade e perdeu a noção de que somente através de Educação é que ela poderia superar as violações e as negações de seus direitos, não conhece o Conselho Tutelar, não conhece o papel das ONGS, não sabe o que é uma política pública e não sabe qual o papel do assistente social. A alienação de Carla e suas amiagas é bastante notável.
Como falar de valores nessa perspectiva? Como achar formas de se falar de políticas públicas e acessos se estes são fragilizados em sua totalidade? Como pensar ações que possam sanar minimamente as carências de direitos de Carla e outras profissionais da rua? Como pensar em juventude frente às ditaduras corruptas e eletivas do neoliberalismo? Como pensar em inclusão na política de saúde, educação, habitação e assistência social para esse segmento da sociedade que fica à margem de todas as realizações político-sociais do mundo contemporâneo? Como fazer a sociedade entender esse segmento para além da culpa? Como estrategar falas que tirem a culpabilização da prostituição dos travestis em detrimento do cerceio dos acessos? s~çao muitas as questões que vão ficando após o encontro com Carla.
Acredito que o encontro com Carla foi transformador para nós dois, Carla me encheu de perguntas, quis saber de minha vida pessoal, se eu era casado, se gostava de meninos ou de meninas, me falou que eu era bonito (rsrsrsrsr). Pediu camisinha, do outro lado da rua escutei “Ei Carla tu vai é casar com ele é?”.
Dividi com Carla o tempo de uma hora e dez minutos de conversa, durante esse tempo Carla se mostrou muito atenta ao que eu dizia, ao que eu perguntava, ao que eu queria saber, respondia tudo de modo muito direto, ao final me perguntou se eu não queria tirar foto, perguntou se eu voltaria, “quando quiser pode vir.” (sic.).
Esse mergulho no campo foi muito importante, pois percebo que há muito o que se entender quando estamos na pesquisa, me senti muito confuso, perdi a noção do campo, não sabia mais, confesso que ainda não sei, se Carla ou se o local de seu trabalho são o meu objeto de pesquisa nesse trabalho, o fato é que a partir do contato com Carla pude mapear meus preconceitos, medos, subjetividades e afetividades, é possível se mapear a demanda de políticas públicas para esse segmento, é possível se mapear demandas também afetivas, são muitas as carências, falamos de algumas eu e Carla, mas muitas outras ficaram subentendidas, escondidas, guardadas para quem sabe em um outro momento aparecerem de forma teimosa.
Me despedi de Carla e segui rumo ao carro, nesse trajeto olhei para trás e vi claramente que a dinãmica de trabalho ali instaurada não se modificou. De dentro do carro vi Carla rir com as colegas, reforçar o batom, acender um cigarro e voltar para a esquina da Solon Pinheiro com Bárbara de Alencar, da mesma forma que a encontrei. Vestida de nua, despida de políticas públicas, desejando um futuro melhor. E eu segui. Assim como Carla. Seguimos ao nosso modo Carla e Eu.
Assinar:
Postagens (Atom)